Novas regras para a factura do lixo retiram poder às autarquias

Regulamento tarifário, peça central para a privatização da EGF, limita tarifas sociais e prevê descontos para famílias numerosas.

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Privatização da EGF criou uma guerra entre o Governo e os municípios Enric Vives-Rubio

Facturação ao peso, descontos para famílias numerosas e o fim da liberdade dos municípios para fixarem tarifas a seu bel prazer são as principais novidades de um novo regulamento que vai definir quanto os portugueses irão pagar pela recolha e tratamento do lixo.

Homologado recentemente pelo ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, o regulamento tarifário dos serviços de gestão de resíduos urbanos deve entrar em vigor a partir de 2016. Mas conta desde já com forte oposição das autarquias.

É uma peça essencial que resulta das novas funções da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), que este ano passou a regular toda a actividade de gestão dos resíduos, incluindo a dos municípios.

As câmaras municipais não tinham praticamente limitações na fixação das tarifas. Deveriam, em tese, seguir uma recomendação tarifária da ERSAR, que não tinha, no entanto, poder vinculativo. Agora, as autarquias continuarão a aprovar as suas tarifas, mas são obrigadas a seguir uma fórmula de cálculo definida pelo novo regulamento da ERSAR.

As câmaras perderão, também, a liberdade de fixar as suas próprias “tarifas sociais” para famílias mais carenciadas. Segundo o regulamento, tais tarifas aplicam-se a um conjunto específico de situações – para utilizadores que estejam a receber complemento solidário para idosos, rendimento social de inserção, subsídio social de desemprego, pensão social de invalidez ou famílias no primeiro escalão do Abono Família.

A tarifa social, segundo o regulamento, só poderá se reflectir na isenção da “tarifa de disponibilidade”, um valor fixo da factura dos resíduos.

Pagar por peso

A parte variável da factura do lixo é hoje indexada ao consumo de água. O regulamento prevê, no entanto, que poderá também ser calculada de outra forma, com base no volume efectivo de resíduos que cada família deita fora. Segundo o documento, haverá quatro escalões de tarifas – do primeiro, até 36 quilos ou 240 litros de lixo por mês, ao quarto, acima de 180 quilos ou 1200 litros.

Para os municípios que optarem por esta via, está previsto um desagravamento para famílias numerosas, sob a forma mais resíduos em cada escalão por cada membro de um agregado com mais de quatro elementos.

Cobrar pelo volume efectivo de lixo era algo que já estava nas recomendações anteriores da ERSAR. Mas agora passa a estar legalmente regulamentado, como incentivo a uma factura mais justa. “Temos a consciência de que é um processo difícil de implementar. Não se pode fazer de um ano para o outro”, diz porém o presidente da ERSAR, Jaime Melo Baptista.

As tarifas que os operadores “em alta” cobram às autarquias para tratarem do lixo – em aterros, incineradores, estações de compostagem e centros de triagem – serão, estas, fixadas directamente pela ERSAR. São sobretudo sistemas multimunicipais, nos quais os municípios têm participação minoritária e o Estado maioritária, através da Empresa Geral de Fomento (EGF), que será agora privatizada. O novo regulamento é uma peça central para o processo de privatização.

O cálculo das tarifas dos sistemas será feito com base num conjunto determinado de proveitos permitidos, ou seja, de valores que os operadores podem incluir na tarifa. Em várias parcelas foram introduzidos mecanismos para incentivar a eficiência da gestão. Nos custos de capital, por exemplo, só poderá entrar para a tarifa a remuneração das infra-estruturas na proporção em que estão efectivamente a ser utilizadas. “Se se detecta que uma infra-estrutura está a ser utilizada a 80%, só será remunerada a 80%”, exemplifica Melo Baptista.

A ERSAR definirá ainda metas de eficiência a cumprir por cada sistema de gestão, a serem incluídas no cálculo dos custos de exploração. Se não forem atingidas, o valor adicional não poderá ir para a tarifa. “O regulamento cria os incentivos para que o próprio operador seja eficiente”, diz o presidente da ERSAR.

Autarquias descontentes

As autarquias, no entanto, não estão contentes. A Associação Nacional de Municípios já tinha emitido em Janeiro um parecer desfavorável ao regulamento, considerando que este “indicia uma vontade de tutela sobre as autarquias”, quando visto em conjunto com outra legislação nova, como a lei orgânica da ERSAR e o novo regime jurídico dos serviços municipais de águas e resíduos.

No documento, a ANMP recorre a um parecer do constitucionalista Gomes Canotilho para considerar que as “amplas competências atribuídas à ERSAR no domínio da fixação do regime tarifário” não são conformes “com os imperativos constitucionais”, criando um “quadro geral de violação do princípio da autonomia do poder local”.

Um dos pontos mais sensíveis é o das tarifas sociais. As câmaras queixam-se de que, “ao fixar taxativa e restritivamente a elaboração do tarifário social”, a ERSAR as impede de tomar “decisões locais em matéria de políticas sociais”.

No mesmo documento, os municípios reclamam “um exercício de simulação” que permita aferir o impacto do novo modelo de revenue cap na “evolução tarifária a curto, médio e longo prazo”.

Em declarações ao PÚBLICO, o vereador Alexandre Maciel, da Câmara Municipal de Barcelos – accionista do sistema Resulima que cobra a tarifa mais baixa do sistema EGF, de 18 euros por tonelada de resíduos recolhida – sublinha que as dúvidas se mantêm e que o documento, “genérico e abstrato”, não permite perceber quanto irão subir as tarifas.

O ministro do Ambiente tem dito nas últimas semanas que nos próximos anos a tendência será de harmonização e que o novo regulamento permitirá que as tarifas fiquem abaixo do que necessariamente ficariam no futuro.

"Não é uma folha de cálculo"

Considerando que o diploma “surge para conformar e balizar” a decisão do Governo de privatizar a EGF e garantir um modelo de negócio apetecível aos candidatos, Alexandre Maciel sublinha que também não é claro se os municípios vão poder acomodar variações na tarifa ou se têm de repercuti-las no valor cobrado aos munícipes.

Jaime Melo Baptista, presidente da ERSAR, diz que o regulamento dá aos municípios muitas formas de flexibilidade para fixar as suas tarifas, dadas as diferentes componentes da fórmula. “Isto não é uma folha de cálculo em que entram os dados de um lado e sai uma só tarifa do outro”, afirma.

Em Fevereiro, os municípios accionistas da Valorsul, a “jóia da coroa” da EGF, acusaram a ERSAR de “servir a estratégia do Governo” definindo um modelo de tarifário que garante aos privados rentabilidades do investimento próximas de 10%. É uma remuneração que autarquias como Lisboa, Loures, Amadora e Odivelas, entre outras, consideram que “não deixa de ser muito discutível”, porque “não abundam investimentos sem risco e com estas taxas de rentabilidade”.

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