“A queda do consumo em Portugal é uma espada sobre a cabeça dos que trabalham no sector cervejeiro”

João Abecasis, presidente da Associação Portuguesa dos Produtores de Cerveja, antecipa novas quedas nas vendas de cerveja este ano depois de, em 2013, o sector ter conseguido recuperar. Em quatro anos, perderam-se dez mil postos de trabalho indirectos e 100 directos.

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João Abecasis pede apoio ao Governo

João Abecasis é presidente executivo da Unicer mas falou ao PÚBLICO enquanto presidente da Associação Portuguesa dos Produtores de Cerveja (APCV), nas instalações da organização em Lisboa. A crise fez perder os momentos de convívio social, que convidam ao consumo desta bebida alcoólica e, por isso, os empresários pedem incentivos ao Governo para dar a volta à perda de vendas. Em quatro anos, perderam-se 100 postos de trabalho directos e dez mil indirectos. E as exportações “não vão ser a panaceia do sector”, defende. Enquanto isso nascem novos negócios: já há 20 micro-cervejeiros a produzir cerveja artesanal e cresce o fabrico ilegal caseiro.

No ano passado, e pela primeira desde 2006, os portugueses beberam mais cerveja. Em 2014 o consumo continuou a subir?
Ainda não tenho os dados todos do fecho do Verão mas há alguns sentimentos contraditórios. Em 2013, e pela primeira vez após muitos anos, o mercado em Portugal não caiu e teve um ligeiro crescimento. Por outro lado, tivemos uma queda importante nas exportações. Em 2014, no campo das exportações, estamos a verificar uma ligeira recuperação. Estou em crer que, tenhamos nós os dados de todo o sector, se denotará uma ligeira recuperação. Mas isto quer dizer que não regressámos aos níveis recorde de 2012. Ao mesmo tempo, e como alertei na altura, era importante sustentar as promessas tímidas de crescimento que registámos o ano passado em Portugal e, por isso, neste momento temos sentimentos contraditórios.

Significa que o consumo não cresceu?
Há um lado positivo ligado ao turismo. Estou convicto que, fechado o ano, em locais como Lisboa, Porto e zonas com mais afluência de turistas estrangeiros, como o Algarve, vamos assistir a um crescimento do consumo impulsionado pela atracção turística. Mas fruto de um Verão mais fraco em 2014, acredito que vamos a assistir a um decréscimo generalizado do consumo.

Quanto é que o Verão pesa nas vendas?
Os dois meses do Verão pesam um terço nas vendas. Julho e Agosto são fundamentais e já tínhamos avisado que, estando prudentemente optimistas quanto aos resultados do ano passado, isso se devia a um excelente estado do tempo em 2013. Mas a resiliência que o sector demonstrou ao longo de muitos anos mantém-se. De 2008 a 2012 a produção de cerveja praticamente não caiu e isso deveu-se às exportações (de lembrar que o consumo em Portugal caiu 20% nesse mesmo período). O ano passado foi difícil nas exportações e conseguimos recuperar no mercado interno. Este ano vamos recuperar no campo internacional mas não vamos crescer em Portugal. A melhor notícia que podíamos ter no final do ano era não descer no consumo interno, mas tenho as minhas dúvidas. E por isso é fundamental haver um quadro de incentivos ao sector de modo a que, uma vez por todas, a recuperação seja sustentável.

Se os portugueses nunca beberam tão pouca cerveja o que estão, então, a beber?
O que acontece é que estão a sair menos de casa. Uma boa parte desta perda de consumo e de perda económica deve-se à restauração, que tem uma tendência clara de declínio. Dou-lhe o exemplo de três países: Dinamarca, Reino Unido e Espanha. No ranking de competitividade mundial estão acima de Portugal e tiveram reacções diferentes de protecção ao sector da restauração e das bebidas. O caso britânico e dinamarquês são até semelhantes ao que sucedeu com o consumo em Portugal. Tal como nós assistiram a uma queda de 20% entre 2008 e 2012 mas o que acontece é que ambos os governos, em 2013, implementaram uma série de medidas, como a descida do IEC (imposto especial sobre o consumo), como forma de revitalizar o consumo da categoria no canal da restauração. Espanha não esperou por 2013. Fê-lo em 2005 e o consumo de cerveja não caiu.

Os argumentos dos cervejeiros ou do sector de restauração não têm convencido o Governo…
Sou elogioso quanto ao trabalho que o Governo tem feito. A recuperação recente de 15 lugares no ranking da competitividade são boas notícias e altamente credíveis, mas ao analisarmos os resultados o que verificamos é que somos um país com boas infra-estruturas – o sector exportador beneficia disso – temos boa base tecnológica e bons quadros, mas além do esforço de desburocratização que se fez, há trabalho a fazer nos impostos e o governo também isso admite.

Ao que tudo indica o IVA não deverá aumentar, mas em 2015 haverá novas subidas de impostos sobre as bebidas.
Ainda não sei que medidas ficarão no Orçamento do Estado mas há poucos meses parecia que íamos em sentidos diferentes. Nós falámos de uma descida do IVA e o Governo falava em aumentos. Neste momento não estamos em sentidos opostos, apesar de ainda não poder dizer que estamos na mesma direcção. O que há sempre é a tentação das medidas fáceis, de curto prazo, que geram mais receita e levam os agentes económicos a arcar com os custos.

A indústria das bebidas espirituosas defende um aumento de impostos igual para todos, na ordem dos 3,5%. E os cervejeiros?
Para produtos diferentes deve haver regras diferentes. E os produtos não são de forma nenhuma iguais, quer no seu cariz económico, quer agrícola, ou quer no impacto na actividade económica do país.

oltando aos hábitos dos portugueses. O consumo de cerveja faz-se mais fora de casa: significa que é sobretudo um acto social?
Sem dúvida que é de convívio social e foram esses momentos que se foram perdendo com o evoluir da crise económica em Portugal. Diria que, em si mesma, esta cultura de nos encontrarmos no café é muito positiva. Perderam-se esses momentos e os portugueses apertaram o cinto em momentos que consideram ser de prazer, mas que não são obrigatórios.

A cerveja está muito associada a eventos e festivais de verão. São essenciais para impulsionar o consumo?
Os concertos e a ligação ao futebol têm muito a ver com a relação dos portugueses com um certo tipo de vida social e de convívio. E inclusive faz parte da nossa imagem de marca no estrangeiro. Há pouco falávamos dos bons resultados do turismo: os turistas gostam de vir a Portugal porque além do que encontravam antes, como o bom tempo, boas praias e preços baratos, passaram a ter cada vez mais qualidade. Não só nas infra-estruturas, mas neste tipo de eventos. Nos festivais de Verão o mais marcante este ano foi o aumento de espectadores estrangeiros.

Qual é a estratégia para travar o consumo? Comunicar mais para os turistas?
O mercado doméstico é a base de sustentabilidade das empresas cervejeiras e isto não tem a ver com turismo ou festivais. Tem a ver com o consumo ao longo do ano. Ao mesmo tempo, a estratégia é vingar no estrangeiro. Seja através das exportações, quer de novas “ventures” em vários países do mundo, o primeiro dos quais Angola.

As vendas para Angola, principal mercado externo, caíram muito devido ao aumento exponencial das taxas de importação. Ainda não conseguiram recuperar?
Estou convicto de que chegaremos ao final de 2014 com uma recuperação dos volumes exportados genericamente, e para Angola em particular. De forma nenhuma para os níveis de 2011 e 2012. Daí que o sector comece a olhar não só para a exportação, mas também para a produção local. No final do ano passado e no início do ano, já alertámos para o quão fundamental é apoiar sector. As exportações não vão ser a panaceia do sector.

As duas maiores empresas do sector, Unicer e Central de Cervejas, tentaram ter produção local em Angola. Por que é que ainda não conseguiram?
A experiência que temos é que as novas iniciativas e mercados demoram sempre mais tempo a vingar do que julgamos. Seja em projectos industriais, sejam de exportação. Se calhar em Angola as novas realidades de investimento demoram a vingar, da mesma forma que demoram as nossas exportações para o Médio Oriente.

Há alguns anos o sector das cervejas era profícuo em inovações e lançamentos de produtos. Este movimento abrandou consideravelmente com a crise. Há menos investimento?
Há menos dinheiro disponível mas não é da parte das empresas: é da parte do consumidor para experimentar e para arriscar. Os períodos de crise levam a isso, conduzem a escolhas seguras. Penso que boa parte da inovação do sector foi focada na garantia da qualidade, para se manter relevante, em vez de fazer variações de um produto.

Como é que olham para a entrada no mercado dos produtores de cerveja artesanal?
Com bons olhos. Por duas razões. Em primeiro lugar, os micro cervejeiros trazem variedade e sofisticação, sempre num quadro de experiência cervejeira e isso é muito bem-vindo. Depois porque têm o mesmo tipo de desafios e preocupações que nós. Também querem ver a categoria dinamizada e apostam na qualidade. Mantemos conversas e, tal como nós, estão absolutamente preocupados com a maior qualidade possível do produtos. É que além das grandes cervejeiras e dos micro cervejeiros, há cervejeiros caseiros que apresentam muitas vezes uma qualidade variável. E isso não beneficia a categoria.

Já houve reuniões.
Sim, umas mais formais, outras menos. Somos confrades na mesma confraria.

Mas vão fazer parte da APCV?
São muito bem-vindos. Mas independentemente disso partilhamos as mesmas preocupações e paixão.

Têm dados concretos sobre as cervejarias caseiras de que fala? É uma realidade que está a crescer?
Não será tão disseminado como a produção caseira de vinho e tal como não se sabe bem quantos desses produtores de vinho há, em termos da cerveja há a mesma dificuldade. Mas diria que é mais importante o crescimento dos cerca de 20 micro-cervejeiros que existem do que esta produção caseira. O que é importante é que não danifique a imagem do sector.

Há seis fábricas em Portugal (depois da Unicer ter encerrado a produção em Santarém), que tiveram o ano passado a menor produção desde 2007. Houve despedimentos?
O emprego directo no sector tem-se mantido relativamente estável, mas o emprego total diminuiu de forma significativa. Perdemos dez mil postos de trabalho, de 70 para 60 mil, todos ligados à restauração e ao consumo na restauração. Não tanto nos empregos directos. O sector empregava 1500 trabalhadores em 2008 e em 2012 eram 1400. Sem reposição do IVA a 13% não há perspectivas de aumento da mão-de-obra.

Alguns trabalhadores com quem falei relatam que nas unidades fabris há cada vez mais contratos de curta duração e uma grande rotatividade de pessoal.
Não tenho esses dados a que se refere. Julgo que o sector é dos que tem um comportamento social mais exemplar. Não posso falar por todas as empresas da associação, mas naquela em que eu trabalho o salário é claramente acima do ordenado mínimo. Há uma atenção à segurança e ao combate à sinistralidade. Agora, uma coisa é certa: a queda do consumo em Portugal é uma espada sobre a cabeça dos que trabalham no sector. É uma questão de sustentabilidade. Os empresários têm tido a resiliência de encontrar lá fora o que perderam cá dentro. E se não fosse assim, ainda teríamos menos empregos no sector.
 

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