A Nobre já mudou de mãos cinco vezes mas ainda fala português

Marca nacional está a exportar enlatados halal para entrar no Médio Oriente. Fusão das duas fábricas que tinha em Portugal foi antecipada e custou oito milhões de euros.

Produção da Nobre está agora concentrada em Rio Maior Tiago Machado

É um trabalho de perícia, aperfeiçoado pela experiência. Mulheres munidas de facas afiadas, protegidas com cotas de malha debaixo das batas brancas, limpam as gorduras de pernas e pás de porco que acabaram de chegar à fábrica. Na linha da desossa, cada uma tem um papel, cronometrado pelo andamento do tapete onde a carne circula. Na Nobre, em Rio Maior, trabalham 650 pessoas em cinco linhas de produção, mas só para esta fase são necessários 105 trabalhadores, a maioria mulheres.

“São mais perfeitas no corte, o que se traduz num maior rendimento da carne e menos desperdício”, explica Luís Raimundo, director executivo da qualidade e de investigação e desenvolvimento. A linha de produção é a do fiambre, produto que está em 91,7% dos lares portugueses.

Do abate do porco — geralmente de raça branca — até ao processamento da matéria-prima passam cinco dias. Os desperdícios da carne, ossos e gorduras, são aproveitados para fazer, por exemplo, farinheiras e morcelas ou sabão. O fiambre é mesmo feito com carne: usa-se toda a pá ou perna do porco que é injectada com uma salmoura (mistura de água, sal, açúcar, gelificantes e conservantes). Fica, depois, 18 horas numa máquina a ser, literalmente, “massajada”. “A carne vai para estes tambores que rodam e pela acção mecânica, vácuo e temperatura, a salmoura é absorvida”, explica Luís Raimundo.

As máquinas ajudam os trabalhadores a produzir rapidamente. A peça de carne, depois da massagem, é embalada em vácuo e colocada em formas, que lhe dão o aspecto que conhecemos. O fiambre é cozido a vapor durante oito horas e é aqui que, em cozedura lenta, que preserva os sabores.

Foi num talho, em Rio Maior, que tudo começou. E é nesta cidade que o negócio ainda se faz. A Nobre foi criada por Marcolino Pereira Nobre em 1918 mas deixou de ser uma empresa de capital nacional logo no início dos anos 1990, quando foi vendida à BP Nutrition. Desde então, andou de mão em mão: primeiro para a Sara Lee, depois para a Smithfield Corportation, que em 2008 se fundiu com a espanhola Campofrío. Mais recentemente, a empresa passou a ser detida pelos chineses da Shuanghui que compraram a multinacional americana criando, assim, o maior grupo do mundo no sector de transformação de carne. E, esta semana, nova surpresa. Os mexicanos da Sigma avançaram para uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) sobre a Campofrío.

O negócio fundado por Marcolino Pereira Nobre rende hoje, em Portugal, 105 milhões de euros, quase todos feitos graças às vendas internas. Mas em tempo de crise, muda-se o leme. As exportações são a estratégia. Tal como a inovação.

Num escritório forrado a Madeira, as cadeiras ainda são do tempo dos fundadores. O espaço vai ser remodelado em breve, diz Rui Silva, presidente executivo da Nobre, que fez carreira em gigantes do grande consumo como a Procter & Gamble e a Pepsi. A empresa está em transformação. Em Maio, Rio Maior passou a produzir todos os produtos. A unidade de Mem Martins encerrou, os terrenos deverão ser vendidos. E dos 100 trabalhadores afectados, 60 receberem propostas para se mudarem. Mas apenas 15 aceitaram. E destes, a maioria vai e vem todos os dias em transporte pago pela empresa.

A fábrica tem uma área de implantação de 38 mil metros quadrados e, durante um ano e meio, um investimento de quase oito milhões de euros serviu para adaptar as instalações aos novos tempos. “Temos projectos para ocupar toda a dimensão porque vamos aumentar a nossa capacidade exportadora. Não antecipamos grandes ganhos no mercado interno, mas 20% do nosso mercado já é exportação”, diz Rui Silva, sem querer adiantar muitos detalhes sobre os novos projectos.

As vendas para o exterior somam 20 milhões de euros. “Duplicámos em três anos. Metade das vendas são com a marca Nobre, outra metade refere-se à preparação de produtos para o grupo depois comercializar com as suas marcas noutros países”, explica. A expectativa é aumentar entre 10 a 15% as exportações em 2014. Entre os 30 países para onde exporta, Angola é o mais relevante, diz Rui Silva, sem adiantar mais dados. Segue-se o mercado europeu, dominado pelos emigrantes portugueses.

“Um presunto ou um enchido português não é procurado a nível internacional. Mas o grande impacto que temos tido é a nível da mercearia, com os produtos enlatados, nomeadamente salsichas”, conta. Com prazos de validade até dois anos, a “lata Nobre” nos mercados de África assume vários usos. O produto é vendido à unidade, a salmoura é usada para fazer comida, a lata é usada em escolas.

Enlatados para cenários de catástrofe
Outra das potencialidades das latas é o seu uso em cenários de catástrofe. Rui Silva não esconde que há, aqui, oportunidades de negócio. “É uma garantia de que há proteína disponível para as populações nesses casos”, diz, admitindo que quando há acidentes como tsunamis ou furacões, a empresa entra em contacto com agentes locais em busca de clientes.

O crescimento das exportações também se faz através do investimento em nichos de mercado, como o dos produtos halal, destinados a consumidores muçulmanos. “Um terço da população mundial é muçulmana e é um mercado em evolução. Havia muitos contactos que queriam produtos compatíveis com as regras halal e nós investimos muito nessa solução”, adianta, acrescentando que a Nobre foi a primeira empresa a produzir salsichas halal enlatadas.

No mercado doméstico, a quebra de consumo obrigou a empresa a ir “por áreas desconhecidas”. Um dos primeiros passos foi analisar o portefólio. “Queríamos reduzir a nossa complexidade. Tínhamos perto de 700 referências e hoje temos cerca de 400”, adianta o presidente executivo. Depois, foram criadas novas gamas. Este ano, a Nobre lançou um fiambre de receita tradicional, 20% mais caro que o da perna extra, o fiambre de maior qualidade. “Ao contrário do que se pensa, o consumidor está a diversificar. Tanto há os que querem coisas mais baratas, como os que procuram produtos de gama e preço superior”. Por isso, a aposta em produtos com preço fixo de um euro mantém-se e será reforçada. As gamas económicas, lançadas no início de 2012 já valem 5% das vendas totais da empresa, e pesam 10% na categoria de charcutaria.

A aquisição da Shuanghui, que fica com 37% do capital da Smithfield (dividido com a Oaktree e vários outros accionistas) foi mais um momento de viragem para a Nobre. O negócio foi concretizado em Setembro por 4,7 mil milhões de dólares (3,4 mil milhões de euros) para satisfazer o apetite chinês por carne de porco. “Estão ávidos de aprender connosco. O negócio das carnes processadas na Europa é do mais evoluído que há no mundo”, resume Rui Silva, que não teme grandes intromissões na gestão. Mas há novas mudanças no horizonte da Nobre. O grupo mexicano Sigma lançou, esta semana, uma OPA sobre a Campofrío avaliada em cerca de 700 milhões de euros. A empresa comprou as participações da família Ballvé (12,4%), do fundo Oaktree (24,2%) e da Caixabank (4,17%), controlando 45% do capital da empresa de carnes processadas, onde a Nobre se inclui. A OPA, obrigatória, incide sobre os restantes 55%.

“Estamos muito optimistas porque são empresas que querem investir, são do sector alimentar. As alterações accionistas em nada têm prejudicado a Nobre, pelo contrário, têm permitido ainda mais investimento e desenvolvimento tecnológico”, conclui Rui Silva.
 

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