Vhils

Quando miúdo, ali pelos dez anos de idade, ia ser pintor. Chegara, havia pouco tempo, a Vila do Conde e vivia pasmado com a beleza antiga da cidade, essa espécie de solenidade tão deslumbrante quanto aflita. Porque ia ser pintor, prometi à professora de artes visuais que faria o meu trabalho acerca da capela da Senhora da Guia, uma casa pequena com a ousadia de se plantar tão sobre o mar. Era, já então, o meu lugar adoptado. O valente e trágico lugar que tanto parece acabar a terra quanto começar o mar.

Por causa do filme do Miguel Gonçalves Mendes, O Sentido da Vida, aconteceu de o Vhils chegar a Vila do Conde para esculpir no chão do pontão da Senhora da Guia o meu rosto. Eu acreditei pouco quando o Miguel pensou nisso. Há ideias que nos parecem demasiado boas e demasiado atempadas, a realidade raramente obedece à vontade e ao tempo. Somos constantemente uma promessa, mais do que a concretização de algo. E o Vhils chegou a Vila do Conde e andou de picareta no pontão e fez umas ponderações. Olhou para o ecrã do telemóvel. Repensou coisas. A rebentação aumentou. Por vezes éramos envoltos num chuvisco leve, como uma poeira de água que se espalhava em redor. Começámos a achar que as ondas passariam o pontão e criámos distância. O meu rosto, de todo o modo, já lá ficara. No chão. Sorrindo para o céu limpo por onde os pássaros haverão de me avistar.

É estranho que o nosso rosto fique gigante na invernia de um pontão, agora encarando a noite cerrada, debaixo do frio, solitário. O gigantismo do nosso rosto parece acarretar uma microscopia da alma. Talvez o gigantismo do corpo possa ser uma ínfima parte da alma. Algo que se veja do invisível por se ver numa escala tão grande. A verdade é que regressei a casa com a impressão de estar estendendo mais e mais a matéria afinal extensível que sou. Como se fosse do tamanho que leva de minha casa à capela da Senhora da Guia. Seguramente, tem que ver com a noite. Apaga-se o sol e o que existe é mais interior. Afirma-se no inconsciente de cada um, mais por intuição. Sabemos das coisas como se existissem atentas a nós também.

Fiquei atento ali ao largo da Senhora da Guia, certamente afundado nas ondas a noite inteira, sorrindo a cada vez que a água amaina. Sorrindo e vendo, continuamente, o céu despido, apenas ventando, por onde estarão os pássaros no pertinho da Primavera.

Ainda que saiba estar em casa, fui deixado ali também. Era já anúncio disso o regresso constante à capela. Constante porque, mais do que ver o que há, eu ia regressando para encontrar quem sou. De algum modo, desde pequeno que ali fui deixado. E, em parte, regressar é apenas comprimir, intensificar aquilo que, por uso da vida, se estende.

Algumas coisas são perigos de ego. Quando a vida nos traz o que pode ser até apenas cinematográfico, porque a lucidez não faria esperar tal coisa, nós lidamos com o gordo do orgulho, esse engodo que arranjamos para compensarmos das tristezas todas. Fica difícil não ceder ao gordo do orgulho ao ver o Vhils criar o meu rosto num contexto de uma poeticidade brilhante, que mexe com a minha identidade mais profunda. A originalidade do trabalho do Vhils, o carisma que deixa em cada peça, honra-me muito. Como me honra aquela solidão quase apenas triste do pontão, e a visita do mar, mais a expectativa dos pássaros para a próxima Primavera. Espero, com sinceridade, chegar à Primavera como chegam as crianças a cada dia, ou seja, preparado sempre para uma maior beleza, para uma qualquer felicidade. Preparado, quero dizer, preparado.

Já não sei desenhar. Fiquei muito feio dos dedos. Não é provável que algum dia volte a tentar pintar a capela da Senhora da Guia. De todo o modo, aquela pequena casa, e o seu caminho mar adentro, sempre me serviu para a arte. A arte absoluta de ser gente, e a arte susceptível aos sentidos. Comunicante, toda a arte é espiritual. O meu rosto é espectro no pontão. Ele é, sem mim, gente de si mesmo. Importará pouco que seja eu ou outro qualquer, o pontão, como se por si só, abriu os olhos e sorriu. O Vhils milagrou o pontão. A Senhora da Guia enternece a sua candura milenar.     

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