Um cadáver em decomposição num bairro de Istambul

Uma mulher morta dentro de um apartamento num bairro de luxo em Istambul. Com ela, morre a burguesia e uma ideia ocidentalizada da Turquia. No Dia em que os Cães se Revoltaram, no São Luiz, é uma Madame Bovary feita turca contemporânea.

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Há um tipo que passeia os cães no bairro de Nisantasi e sem saber bem como nem porquê profetiza uma morte. A morte talvez até já tenha acontecido e é com ela que se inicia No Dia em que os Cães se Revoltaram, texto de Ceren Ercan, encenado por Mark Levitas, estreado no 20º Festival Internacional de Teatro de Istambul, em Maio. Mas nunca é apenas de uma morte que se fala. Será, pelo menos, de três mortes que acontecem em simultâneo e vão empestando a peça enquanto cadáver em decomposição. Morre a velha burguesa num apartamento de Nisantasi, mas morre também a burguesia desse bairro emblemático de Istambul e morre uma miragem de ocidentalização da cidade e do país.

Nisantasi, esclarece Mark Levitas ao Ípsilon, é “um bairro de luxo onde viviam as pessoas com poder nos anos 40 e 50, em que encontramos agora gente cuja classe social começou a perder o seu poder económico e a sua influência”. O nobelizado escritor Orhan Pamuk é um dos resistentes de uma burguesia culta que foi engolida e, aos poucos, definhando num território que deu lugar a uma zona comercial faustosa, igual a qualquer área semelhante de uma capital mundial, esventrada de alma própria. Ali vê-se a elite derrubada por um novo-riquismo frívolo e coincidente com aquilo que Levitas identifica num país moldado “nos últimos 15 anos” por um conservadorismo crescente. O número atirado pelo encenador turco, 15 anos, procura um intervalo temporal fácil de explicar. Sem que chegue a nomear Recep Tayyip Erdogan, não custa recuar até quase 2003, ano em que o actual Presidente da Turquia ascendeu ao poder enquanto primeiro-ministro (2003-2014).

Não é novidade que Erdogan tem conduzido a Turquia numa deriva autoritária fortemente associada a um processo oficioso de islamização do país, contrário à laicidade defendida pela Constituição turca, e em que as vozes contrárias à sua liderança têm sido sistematicamente afastadas – a recente purga de juízes, militares, académicos ou jornalistas após um falhado golpe de estado é disso exemplo. Daí que Mark Levitas não tenha resistido a levar à cena o texto em que Ceren Ercan adapta, de forma muito livre, Madame Bovary, de Gustave Flaubert. “Pensámos adaptar o texto à contemporaneidade e à crise da mulher moderna na Turquia”, explica o encenador, “porque o país tornou-se mais conservador nos últimos anos e discute-se muito a ideologia da república e os valores republicanos.” Nesse cenário, a protagonista da peça, filha da velha burguesa morta e esquecida no seu apartamento, é o sinal de um meio privilegiado em ruínas, a tentar encontrar o seu lugar num país com uma nova configuração de que está excluída.

Se Emma Bovary, na ruralidade francesa, era uma bomba-relógio à espera de rebentar com a moralidade e bons costumes, provocando achaques no enraizado conservadorismo, ao mesmo tempo que se afundava numa tragédia pessoal, em No Dia em que os Cães se Revoltaram a ideia é quase oposta. A mudança de ambiente não acontece em virtude de uma alteração geográfica. É o mesmo espaço que se transforma, não é o choque entre uma mulher e a geografia em que foi depositada. É o lugar que se metamorfoseia, é todo um país que muda e a mulher que acompanhamos – ela que “transporta os valores republicanos” – observa esta transformação ao mesmo tempo que conflitua cada vez mais com o novo ambiente que toma conta de um velho espaço. Não é a hegemonia que se choca com um corpo estranho; é alguém que, aos poucos, se torna estranho num lugar que sempre foi o seu.

Mais duro, com mais paixão

Formado em França, para onde partiu em busca de se especializar em teatro físico, Mark Levitas confessa-se próximo de “muito encenadores e autores europeus”, mas recusa a inscrição em qualquer linguagem ou movimento teatral. “Tento sempre agir como se tivesse diante de mim uma página em branco”, diz, “encontrando um caminho graças ao texto e ao trabalho com os actores.” E não acredita em divisões de fundo entre a prática teatral europeia e aquela levada a cabo no Médio Oriente. “Na Turquia, no Irão, em Inglaterra ou na Macedónia, se vamos ver um espectáculo a linguagem é sempre a mesma e chama-se teatro.”

Apesar da universalidade que o atrai, apesar de personagens que façam igual sentido percorrendo as ruas de Istambul ou de Lisboa – onde No Dia em que os Cães se Revoltaram se estreia sexta-feira, no Teatro São Luiz, co-produtor do espectáculo –, há um óbvio esteio local preso à peça. Até porque foi o contexto turco que levou Levitas a regressar ao seu país e a recusar qualquer investimento sério da sua actividade em França. “Em França e Inglaterra faz-se muita coisa, têm muitos subsídios, sistemas muito fortes”, reconhece. “Para se fazer algo na Turquia é mais duro. Mas há mais paixão. E a falta de meios implica-nos numa luta em que dá ainda mais vontade de trabalhar, de encontrarmos espaços onde nos possamos apresentar, de descobrir novos autores com vontade de usar a sua voz.”

Foi nesse sentido que criou com a dramaturga Ceren Ercan (presente em 2015 no programa Chantiers d’Europe do Théâtre de la Ville, em Paris, este ano integra o grupo Fringe Writers que abordará Macbeth, de Shakespeare, num texto próprio a ser encenado no seu país) o grupo Platform, cuja principal missão é a de encenação e divulgação de jovens autores turcos. Este é o primeiro momento dessa reclamação de uma presença no teatro. E, para Levitas, parte da evidência de que, “somos educados para ser como a Europa, mas há hoje uma dificuldade em aceitar isso e uma luta no país em torno dessa questão”.

No Dia em que os Cães se Revoltaram, sugere Levitas, é uma peça nascida de tempos confusos, de fortes conflitos sociais – que não apenas de classe – e da indefinição de uma Turquia que se lê a partir de um apartamento no bairro de Nisantasi. Lá dentro, há uma mulher morta. Cá fora, um desejo de rebelião não se sabe bem de quem, não se sabe bem contra o quê. Sabe-se que há um mal-estar e que isto só vai lá com uma terapia violenta. Ou então, a mulher que já sabemos não morrer sozinha, morrerá ainda mais acompanhada.

O Ípsilon viajou a convite do Teatro São Luiz e do Instituto Camões.

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