Uma outra carne

No espectáculo final do ciclo Gender Trouble, concebido pelo Teatro Maria Matos, a Karnart apresenta Hermaphrodita, um espectáculo de performance e instalação construído sobre um poema de Eugénio de Castro. Uma reflexão visual do que significa estar preso dentro de um corpo.

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Há algo de autoexame igualmente na génese de Hermaphrodita pela Karnart, espectáculo que cruza performance e instalação (perfinst) a partir de um poema de Eugénio de Castro e que se inclui no ciclo Gender Trouble, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, até 24 de Junho. E autoexame porque a companhia dirigida por Luís Castro e Vel Z resgata dois elementos soltos de espectáculos anteriores para aqui os expandir, ao isolá-los e fornecer-lhes assim um novo contexto.

Em primeiro lugar (ou em segundo, pouco importa), há o poema de Eugénio de Castro, autor do simbolismo português contemporâneo de Guerra Junqueiro, Camilo Pessanha e António Nobre e que o escritor espanhol Miguel de Unamuno considerava uma das vozes mais pungentes de um Portugal acabrunhado, melancólico, desgraçado. Hermaphrodita, o poema, faz-se, ainda assim, de uma outra carne. Luís Castro deu com ele durante “uma leitura involuntária, normal” da Antologia de Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia. “Involuntária”, diz, porque não foi na esperança de descobrir por ali a ponta para a invenção de um espectáculo que se aproximou do livro. “Mas num livro deste género, com poesia portuguesa e tão marcante do ponto de vista de intervenção social, de ironia e de sexualidade, abordando tantos campos possíveis de inspiração, claro que me muni imediatamente de papel, de post-its e comecei a tomar nota de coisas que me interessavam”, admite.

O poema de Eugénio de Castro integrou, por isso, Satirotic, projecto que a Karnart montou em 2005 no seu espaço na antiga Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, em torno de uma selecção de textos da Antologia, encenando as palavras ferventes de Guerra Junqueiro, Mário Cesariny, Bocage, O Calafate ou Almada Negreiros. No início desse mesmo ano, descobrimos a outra ponta solta agora enlaçada em Hermaphrodita. Em resposta a um desafio lançado por Luís Castro, seis profissionais da dança criaram outras tantas situações para o actor e encenador interpretar. O segmento proposto pela coreógrafa Amélia Bentes, e trabalhado com a outra metade criativa da Karnart, Vel Z, tratava de criar uma estranheza no corpo em palco através de projecções vídeo em que o próprio actor servia de tela. “O mais importante era a expressão e o que o Luís fazia com o corpo; o vídeo era apenas um componente final”, explica Vel Z. Mas esse efeito, de um corpo projectado em tamanho real sobre outro corpo, equivalendo-se em estatura e envergadura, ficou sempre na cabeça de Vel Z. A ideia, claramente, não só não se esgotara como não fora tão aprofundada como merecia. Até agora.

Não é o olhar
Hermaphrodita nasce, por isso, destes dois momentos que o passado não conseguiu enterrar. Pelo contrário, ficara a latejar nos dois criadores da Karnart esta vontade de imersão no “universo imagético da experiência” que Vel Z queria explorar agora com outros meios técnicos, ligando-a “à questão da intersexualidade que o poema abordava” e que lhes parecia ainda ter “muito para dar”. A projecção do corpo sobre o corpo, num texto que nos fala de um “ser brumoso” – “e assim, no mesmo corpo, em ímpetos d’amor / debatem-se, febris, dois desiguais desejos”, escreveu Eugénio de Castro –, criava então leituras demasiado apetecíveis e tentadoras. Quando a imagem filmada de um actor se projecta sobre a sua verdadeira nudez, é impossível não ver nos seus movimentos mínimos um corpo real a tentar ajustar-se a uma imagem fantasiada, sonhada. Em cada um, há sempre essa tentativa – por mais violenta que possa ser contra a sua natureza – de ajuste ao corpo efectivo, aquele com que nasce e se vive.

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A transexualidade era abordada num anterior espectáculo da Karnart, A Dificuldade em se Exprimir, do argentino Copi. O interesse por essa obra levou Muark Deputter, a facilitar a proposta de Hermaphrodita e a sua inclusão no ciclo

Em cada estremecimento, que os há bastante, vemos também a recusa em pertencer a esse invólucro dentro do qual cada ser está enfiado e pelo qual é limitado. Mas tudo se confunde ainda mais quando, por exemplo, sobre o corpo frontal se projecta o corpo de costas. De repente, ao ser roubada a imagem clara da genitália, tudo se torna difuso, o sexo torna-se indefinido. Mais tarde, quando homem e mulher se fundem, um corpo projectado e o outro real, basta desviar o olhar por segundos e já não sabemos qual foi previamente registado em vídeo e qual está fisicamente perante nós. O que de facto interessa não é o nosso olhar, parece sussurrar-nos Hermaphrodita.

“São uns seres que pairam – quase robóticos – algures numa dimensão qualquer e que nunca são eles próprios”, defende Luís Castro, para quem “as questões da sexualidade – intersexualidade, bissexualidade, as sexualidades todas – são algo de verdadeiramente premente nos dias de hoje.” “As pessoas transexuais e intersexuais têm imensos problemas de identidade na nossa sociedade e a Karnart, que só existe para criar arte com preocupações de reflexão e intervenção social, não se pode alhear destas temáticas.” A transexualidade, de resto, era já abordada num anterior espectáculo da companhia, A Dificuldade em se Exprimir, do dramaturgo argentino Copi. Foi o interesse por essa obra do programador do Teatro Maria Matos, Mark Deputter, a facilitar a proposta de Hermaphrodita e a sua inclusão no ciclo Gender Trouble.

A luta interior, o conflito que habita o texto de duas identidades tentando sobrepor-se uma à outra, acaba depois por ter correspondência numa solução visual que Vel Z define como “a sensação do romper, do despir, do descarnar, quase algo em flor”. Por vezes, os corpos parecem bisseccionados, cortados desde o interior, libertando-se de uma prisão física imposta pelos géneros e pelas suas regras sociais. A desistência pelo meio do suicídio (diante da castigação de não conseguir suportar tal conflito) é depois corrigida pelo autor, que acolhe ambos em si e lhes prolonga a vida.

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O Gabinete de Curiosidades
Após a estreia de Hermaphrodita no Maria Matos, o espectáculo será apresentado no novo Gabinete de Curiosidades Karnart (de 20 a 31 de Julho), na Avenida da Índia, em Lisboa, onde a companhia se sediou em Janeiro de 2014 após uma solução transitória que passou por um armazém no beco da Mitra – que se seguiu à saída da antiga Faculdade de Medicina Veterinária. A solução, sugerida pela actual vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, foi encontrada no edifício onde antes tinham funcionado os ateliers dos escultores Lagoa Henriques e Carlos Amado, assim como de uma sociedade de arquitectos. Deixado meio ao abandono, o local seria severamente vandalizado antes da recente ocupação pela Karnart. “Roubaram cabos eléctricos, torneiras, peças de casa de banho, partiram tudo. Estava um caos e foram necessárias três desinfestações”, lembra Luís Castro. Daí que os primeiros meses, antes da pré-inauguração em que o espaço abriu ao público durante cinco dias, tenham sido passados numa intensa limpeza e remoção de oito contentores repletos com o lixo que enchia as várias divisões.

“Tinha um peso e uma negatividade enormes – que foi preciso limpar e curar”, afirma Luís Castro. Curar equivaleu a um longo tratamento de lixar, decapar e aplicar produtos no solo, trabalho assegurado pela equipa artística da Karnart com a ajuda dos seus associados, de amigos e de voluntários, tendo por fim sido necessárias obras de vulto nas canalizações e nos esgotos com recurso a um apoio atribuído pela Secretaria de Estado da Cultura. O esforço continuado da Karnart na reabilitação do espaço que lhe foi concessionado por seis anos (renovável a partir daí a cada triénio) permitiu já, há um ano, a apresentação de Petróleo, a partir de Pasolini. Mas só este Verão o Gabinete de Curiosidades estará a funcionar de forma regular.

Até porque apenas depois de todo o trabalho de reconstruir e embelezar um espaço que, visto de cima, se assemelha a um estúdio de cinema – várias divisões em madeira, sem tecto – começa a tomar forma a exposição dos “objectos com alma” que infundem o espírito criativo da Karnart. Os muitos objectos em exposição, desde pedras várias a bonecas e peças de artesanato, todo um espólio de peças que remetem frequentemente para uma ideia de interioridade portuguesa visível nas adaptações de obras de Raul Brandão, a qualquer momento podem ser resgatados para um espectáculo da companhia. Além desse espaço expositivo, as condições do Gabinete de Curiosidades passam a permitir uma zona social com salão de chá e venda de artesanato (para associados, pequenos mecenas e voluntários), quartos e áreas de trabalho para residências artísticas, um centro de documentação e o inevitável auditório. O mesmo auditório onde, daqui por um mês, tomado pela penumbra, os pescoços voltarão a esticar-se na direcção de um altar onde repousará um corpo nu, estático, de pé.

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