Portal de entrada para Arlindo Silva

Recusando a arte como narrativa linear, o artista apresenta na Galeria Quadrado Azul apenas uma pintura. Que é uma oferta a Lisboa.

Foto
Arlindo Silva tem usado a pintura para retratar a sua comunidade de amigos FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Assumida a recusa, o tempo passou e as coisas ganharam outro sentido. “Julgo que só mais tarde me apercebi da verdadeira natureza do projecto e da ideia de colaboração. E quando soube que eles vinham de Lisboa ver a minha exposição a Guimarães, fiquei sensibilizado. Senti esse gesto mais intensamente. Combinámos um jantar em minha casa no dia que em viram Coração e Cinzas [a exposição de Arlindo Silva no Centro Cultural Vila Flor]. Quando cheguei das aulas [é professor na Universidade Católica], a minha filha tinha pintado os seus rostos. Comecei logo com ideias de um duplo retrato pintado.”

Não é bem uma imagem da dupla de artistas o que se pode ver na
Quadrado Azul até amanhã. Repara-se no título da exposição e da pintura, André e Sara. “Queria muito retratá-los, mas não enquanto dupla. E virei-os do avesso. Foi a forma de responder à visita. Levei só uma pintura, porque representa de certa forma a palavra ‘obrigado’. Era a imagem que tinha para oferecer a Lisboa.”

Passado, presente e futuro

Recue-se um pouco no tempo, quatro meses, até
Coração e Cinzas. Não faltavam nesta exposição retratos de outros artistas, que nos situavam num espaço e num tempo determinados: a cena artística do Porto, da década passada. Reconhecem-se Marco Mendes, Miguel Carneiro. Eduardo Matos, Carla Filipe. Imagina-se um ambiente de boémia a partir dos “instantâneos”. Há quem dance, há mascarados, gente que fuma, gente de boca aberta, na galhofa, espantada. Podemos falar, a propósito desses trabalhos, do retrato de uma geração? “Sim e não”, responde Arlindo. “Primeiro celebro a amizade, acho que os artistas vêm por arrastamento. Como a arte de certa forma nos invade, é normal que se fique com a sensação de que retratei também uma geração artística. As coisas misturam-se. A verdade é que já retratei algumas pessoas que não pertencem ao círculo artístico. A minha mãe, a minha filha.”

Não há nenhuma concessão ao voyeurismo do espectador. Os retratos, os momentos protegem-se com a universalidade das situações e dos corpos que reclamam a pintura. Se alguns artistas encontram os (seus) materiais no quotidiano, Arlindo Silva encontra a pintura no quotidiano. Ingres, Corot, Monet, Hockney, Freud, todos guiados pela sensibilidade do olhar: o grande arquivo da pintura desvela-se na intimidade do artista, no convívio com os outros. “Escolhi fazer pintura. A minha pintura não esquece o seu legado, revisito situações de natureza mais iconográfica e temática abordada ao longo da História. Mas a pintura não é mais importante do que a música, do que os filmes, a escultura, a BD, a literatura.”

A música intromete-se nos títulos (com a cumplicidade involuntária de António Variações, dos MC5, de Iggy Pop) e nas situações retratadas. Há uma vibração, um júbilo nas personagens que abranda, suavemente, nos retratos onde se manifesta a presença de uma família. É nesses, porventura, que o espectador comum mais se reconhece: devolvidos pela pintura, aqueles corpos, gestos e rostos regressam à vida do espectador. Nada que faça esquecer a dimensão autobiográfica da pintura de Arlindo Silva. “Quando me sento a pintar, sinto-me um director. Poder-se-ia dizer que vou dando, empaticamente, corpo à pintura numa espécie de escrita. Misturo-me nas pinceladas.”

Será dessa mistura que críticos, comissários e outros artistas desconfiam? Afinal, esta é uma obra que não almeja, nem vislumbra, consagrações e distinções. Ou deve-se antes falar da resistência de um preconceito que tem como objecto as ideias de similitude, retrato e imitação pictórica? Arlindo Silva recorda, com humor, os professores que na faculdade o tentavam convencer a desistir da pintura. Falharam e, ao mesmo tempo, conduziram o seu olhar para tantos outros artistas e suportes. Porque falharam? A resposta é elucidativa: “Algumas pessoas tendem a ver a história de arte como uma narrativa. Na arte cabem muitas histórias, mas recuso-me a lê-la de forma linear, como progresso. Creio que algumas coisas vão acontecendo em câmara lenta e arrastando outras dimensões. É absurdo acreditar que as manifestações artísticas de hoje não são melhores do que as de ontem e vice-versa. Todas as formas de arte de certa maneira são passado, presente e futuro porque são ideias por onde embarcámos. Os meios e alguns materiais podem dizer muito acerca do tempo em que vivemos, sobre a roupa que vestimos, a música que ouvimos, os aparelhos que usamos, as formas de comunicação. Mas a essência escapa à forma.”

De volta à Quadrado Azul, Arlindo Silva diz que 
André e Sara já foi comprada, mas que irá fazer, muito provavelmente, outra pintura do casal, agora enquanto dupla. “No final da inauguração consegui uma imagem engraçada onde, de costas, eles olham atentamente para o retrato. No meio dos seus corpos a pintura devolve-nos o olhar. Pintarei essa situação e oferecer-lhes-ei!”

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