O olhar radiográfico

Uma aproximação fantasmagórica ao interior das coisas vivas: o mundo de sombras de Augusto Bobone.

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Augusto Bobone associou-se ao médico Vergílio Machado e produziu em 1896 um conjunto de foto-radiografias que resultam não numa imagem real mas numa espécie de fantasmagoria

Transcender a visão natural, os seus objectos e as fronteiras da sua materialidade é uma ambição humana conhecida. A nossa tradição cultural e filosófica desenvolveu uma enorme suspeita relativamente àquilo que os olhos podiam ver e as imagens do mundo material captadas pelo aparelho visual foram entendidas como enganadoras e lugares de desvio relativamente à verdade.

É desta forma que a possibilidade de o mais importante estar escondido da vista de todos se transformou numa evidência e num lugar comum do modo humano de ver o mundo. Esta desconfiança e descrença criou mundos de sombras feitos de presenças instáveis a que a percepção a razão humana só incompletamente puderam fazer face.

Este é o contexto com que se recebem a fotografia e as imagens técnicas, ou seja, imagens não-artísticas, mecânicas, produzidas sem paixão ou inspiração por um aparelho e que estabilizam o fluxo ininterrupto das imagens do mundo. Os aparelhos de captura de imagem respondem à ambição humana de encontrar formas não artísticas de objectivamente, isto é, sem intervenção da imaginação, representar o mundo e os seus haveres. Este anseio pela representação e reprodução objectiva origina o nascimento da fotografia (em 1826, por Nièpce) e é enquanto ferramenta científica — para as mãos de todos quantos precisam de uma anotadora diligente do mundo natural, diz Baudelaire — que é louvada, desde que mantenha a distância de quaisquer construções poéticas e criativas.

A presente exposição dos trabalhos do fotógrafo Augusto Bobone (1852-1910) no Museu da Electricidade tem este pano de fundo, ou seja, deve ser entendida não como a apresentação de um conjunto de excentricidades e peculiaridades próprias de um tempo, mas sim de importantes peças da história da relação humana com as imagens e com os processos de fabricação do conhecimento. Se a fotografia transporta o anseio da imagem e encerra um enorme impulso realista, os Raios X (descobertos a 8 de Novembro de 1895 por Wilhelm Röntgen) trazem a inquietação metafísica de ver o interior dos corpos materiais, poder observar o interior das coisas vivas, penetrar a matéria e perceber as coisas a partir do seu centro mais íntimo e vital — trata-se pois de ultrapassar a barreira da matéria e, assim expandir o campo de possibilidades de visão natural, superando os habituais territórios de escondimento. Problemas conceptuais e epistémicos que às mãos dos fotógrafos e dos artistas se transformaram em questões estéticas e poéticas.

Fotógrafo oficial da Casa Real e com estabelecimento comercial na Rua Serpa Pinto, em Lisboa, Augusto Bobone associa-se ao médico Vergílio Machado, da Faculdade de Medicina de Lisboa, e produz em 1896 um conjunto de foto-radiografias (apresentadas em 1897 à Academia das Ciências de Lisboa) com o objectivo de contribuir para o desenvolvimento desta técnica auxiliar do diagnóstico clínico. Uma relação comum em que o interesse científico e clínico pela imagem fotográfica impulsiona decisivamente o desenvolvimento da fotografia. 

As impressões radiográficas agora expostas, como explica a curador Margarida Medeiros, “resultam da impressão em superfície emulsionada da imagem projectada pelos Raios X” e devem ser entendidas como aproximações ao interior do corpos que resultam não numa imagem real e verdadeira, mas numa espécie de fantasmagoria. Os temas destas imagens-sombra são partes do corpo, como pés e mãos em diferentes posições, objectos materiais como pinças ou anéis, animais como uma rã ou um coelho. Os Raios X são aqui o dispositivo a partir do qual se pode ver — trata-se do acesso a uma zona de visão anteriormente ignorada, da conquista da opacidade. Uma visão do invisível que não origina uma imagem realista do mundo, antes cria um mundo de sombras que irá ser palco das intensas deambulações da imaginação moderna.

As possibilidades de olhar radiograficamente, localizadas entre a visão científica e a irresistível pulsão humana para o voyeurismo, são um elemento decisivo com ecos em muitas produções artísticas contemporâneas e um importante paradigma de pensamento. O que faz desta exposição um notável contributo para a discussão da história das imagens e do modo humano de perceber o mundo.

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