O admirável tempo sem tempo de Wisnik

Foto
José Miguel Wisnik DR/arquivo

José Miguel Wisnik e convidados
Lisboa, Grande Auditório da Culturgest
Sexta-feira, 18 de Junho, 21h30
Sala a três quartos
4,5 estrelas em 5

Revelou-se, mais uma vez, acertadíssimo o convite da Culturgest a José Miguel Wisnik para, no mesmo palco onde se estreou em Portugal (em Junho de 2007), mostrar temas ainda inéditos do seu próximo disco, viajar pelos anteriores e permitir uma outra estreia, a do jovem cantor Celso Sim, que também trazia um novo disco para apresentar (um “voz e violão” excelente, parceria com Nestrovski, que muita gente comprou no final).

De resto, o concerto de Wisnik (voz e piano), que de novo trouxe consigo o seu parceiro violonista Arthur Nestrovski, criador e professor como ele, a par de músicos de craveira alta como Marcelo Jeneci (teclas), Sérgio Reze (percussão) e Márcio Arantes (baixo), foi uma lição de sabedoria, um cruzamento de sons e gostos antigos e contemporâneos, uma fina tapeçaria de excelentes composições, num tempo sem tempo admirável.

Foi, aliás, esse o nome da primeira canção que soou na noite: “Tempo sem tempo”, parceria de Wisnik com Mautner. E a palavra parceria faz parte da gramática cuidada de Wisnik, porque todo o seu trabalho se conjuga com terceiros, num enriquecimento que exige atenção refinada. A forma como ele conjuga harmonias, ritmos e palavras revela uma mestria tão tranquila quanto eficaz. Cada concerto é também uma aula, repleta de histórias e personagens inusitadas, e a cada passo a plateia deixa-se envolver por elas. Como a que misturou “O sol enganador” (tema do filme homónimo de Mikhalkov) com “Efeito samba”, que um dia Wisnik (descendente de polacos) escreveu com Vadim Nitikin (russo que veio para o Brasil ainda bebé) e apresentou ao vivo na Polónia com Nestrovski (descendente de ucranianos). Tiveram que lhe mudar a letra, até porque não ficava bem cantar ali: “adeus meu Rio de Janeiro, eu vou me embora pra Moscou”. Ficou Polónia, claro. Por outro motivo ainda mais incrível: a música da primeira canção, que eles baptizaram como “tango russo”, era afinal um tradicional polaco.

Outras histórias? Haveria mil, se o tempo o permitisse. E ele contou e cantou várias. Como a desse “Sócrates que leu Platão”, estudou medicina e foi estrela do futebol brasileiro na “Copa de 1982”. Nome? Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, também conhecido por “Magrão”. Pois Wisnik fez dele um samba exaltação e a plateia lisboeta vibrou com ele. Tal como vibrou com a canção escrita para o filme “Terra Estrangeira”, filme de Walter Salles sobre um lugar onde dois brasileiros se perdem. Que lugar é esse? Lisboa. E Wisnik escreveu: “encalhado no fado estou…”

Wisnik trouxe ainda para o terreiro das suas canções nomes como António Cícero (poeta contemporâneo de quem musicou o poema “Os ilhéus”, do recomendadíssimo “A Cidade e os Livros”) ou Gregório de Matos, poeta barroco do século dezassete, nascido em Salvador da Bahia (1636-1695), de quem usou sonetos num belo tema.

“No dia da morte de José Saramago”, como ele disse, com a sala em silêncio, Wisnik quis cantar Fernando Pessoa. “Tenho dó das estrelas”, que em Portugal já fora tornado canção por José Mário Branco, soou na Culturgest como um pungente fado-morna.

E que dizer dos clássicos? Wisnik e Luiz Tatit (que também já tocou na Culturgest, noutro concerto memorável) fizeram o milagre de transformar a abertura da 5ª Sinfonia de Beethoven num fabuloso “Baião de quatro toques”, enquanto Nestrovski (Wisnik disse, em Lisboa, que foi a pedido de Maria João Pires) fez canções a partir de peças clássicas de Schumann (“Pra quê chorar”) e Schubert (“Serenata”), ambas incluídas no disco de Celso Sim com Nestrovski e cantadas, e bem, na Culturgest. E se Wisnik voltou atrás no seu reportório, lembrando canções iluminadas como “São Paulo Rio”, Celso Sim teve o seu momento de glória em “Aquecimento global”, um tema fantástico de Nestrovski musicado e cantado ao jeito feérico de Carmen Miranda (de quem se inaugurava, nessa mesma noite, em Cascais, a exposição “A Nossa Carmen”, sob a batuta de seu mais genial biógrafo, Ruy Castro, com a presença do próprio e do cantor e compositor Marcos Sacramento, outro nome brasileiro que urge conhecer).

Mas isso foi já no “encore” e antes de encerrar definitivamente a noite com “Presente”, desse disco magnífico que é “Pérolas aos Poucos”. Quem perdeu o excelente concerto na Culturgest pode ainda assistir a uma das “aulas show” que Wisnik e Nestrovski darão em Portugal. A primeira é no Fórum Cultural do Seixal (sábado, dia 19) e a segunda no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra (quinta-feira, dia 24), ambas às 21h30.

NOTA:

Para quem não ainda não conhece José Miguel Wisnik, um breve apontamento biográfico: Nascido a 27 de Outubro de 1948, escritor, músico, compositor e professor universitário, é autor de canções para artistas como Maria Bethânia, Gal Costa, Djavan, Zélia Duncan ou Elza Soares e, desde o ano 2000 compõe sobretudo para si próprio. Aos três discos que já gravou, “José Miguel Wisnik” (2000), “São Paulo Rio” (2002) e “Pérolas aos Poucos” (2003), seguir-se-á, talvez ainda em 2010, o duplo “Indivisível”, do qual tem vindo a apresentar, em antestreia, várias canções em espectáculos.

Sugerir correcção
Comentar