Mães mais sós, filhas mais livres

A historiadora francesa Françoise Thébaud estuda há anos o papel e a mudança de vida das mulheres durante a Grande Guerra. E conclui que, se as filhas jovens beneficiaram de uma “maior liberdade” e “novas oportunidades”, “a experiência de guerra das mães de família é antes de tudo uma experiência de excesso de trabalho e de solidão afectiva”.

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Arnaldo Garcez

Historiadora de renome, Professora Emérita na Universidade de Avignon, fundadora da importantíssima revista Clio. Femmes, genre, histoire e Presidente da Mnémosyne (Associação para o Desenvolvimento da História das Mulheres e do Género), Thébaud tem contribuído de modo insubstituível para a promoção de um olhar historiográfico inovador, tanto no plano metodológico como analítico, sobre o papel das mulheres e do género na formação das sociedades contemporâneas, sempre fortemente inspirada por Michelle Perrot, outro grande nome da historiografia francesa que, entre outras obras, co-organizou História das Mulheres no Ocidente (1991-1992) com Georges Duby (a obra foi traduzida para língua portuguesa pela Afrontamento). Françoise Thébaud foi a responsável pelo quinto volume desta marcante obra colectiva, que se centra no século XX. O seu Écrire l’histoire des femmes et du genre (1998) continua a ser uma referência central para todos os que procuram pensar os contextos históricos e os desafios intelectuais da emergência e desenvolvimento desta proposta historiográfica que é também um imperativo cívico.

Uma das importantes consequências desta reavaliação colectiva das causas, contextos e legados da I Guerra Mundial é a reedição, numa versão revista, do seu livro de 1986, Les Femmes au temps de la guerre de 14. Pode sintetizar brevemente os seus principais argumentos e a sua importância actual para o estudo da I Guerra Mundial?
Inscrito no desenvolvimento de uma história das sociedades em guerra e de uma história do feminino que pretende especialmente reler os acontecimentos do ponto de vista das mulheres (que marcou os anos 70 e 80), Les Femmes au temps de la guerre de 14 observa tanto todas as formas de participação das mulheres no esforço de guerra como o que significou viver num país em guerra. A obra interroga-se igualmente sobre os efeitos da guerra nas relações de género e matiza fortemente a tese, então dominante, de que a guerra foi emancipadora para as mulheres.

Porquê decidiu reeditá-la?
Sendo que a obra estava esgotada, a sua reedição impôs-se no quadro do Centenário. As análises da obra não envelheceram, o público leitor interessa-se cada vez mais por este tipo de abordagem da guerra e a historiografia actual privilegia uma história sensível do conflito, examinada à escala dos indivíduos. A obra aborda temáticas sobre as quais convergem hoje abordagens que durante muito tempo foram ignoradas ou combatidas: a história social da guerra, história cultural, história das mulheres, história do género exploram, desde há quinze anos, o íntimo da guerra, as violências sexuadas e sexuais, os modos de saída da guerra.

Por fim, a reedição situa a obra no desenvolvimento da historiografia da Grande Guerra, indica aos leitores os trabalhos posteriores que têm desenvolvido este ou aquele ponto, retoma, segundo as pesquisas mais recentes, a questão do carácter emancipador ou não do conflito.

Num seminário recente, coordenado por Anne Cova e Filipa Vicente no Instituto de Ciências Sociais (Universidade de Lisboa), ofereceu uma visão geral, mas muito detalhada, das formas pelas quais podemos pensar a I Guerra Mundial através de uma perspectiva de género. Quais são os benefícios mais importantes que podemos retirar de uma tal abordagem?
A perspectiva do género complexifica, com benefícios, a abordagem da história das mulheres para o estudo da I Guerra Mundial.  Por um lado, sendo uma perspectiva comparativa e relacional, ela visa a sociedade na sua globalidade e observa o género nas mobilizações, nas experiências, nos compromissos. Por outro, ela está particularmente atenta às representações e usos do masculino e do feminino nas propagandas e nas políticas da guerra, como nas produções culturais da época. Enfim, ela considera os homens como indivíduos sexuados e observa como a guerra mobiliza a virilidade e a põe à prova. Pode acrescentar-se que a questão da emancipação ou não das mulheres se transforma numa outra, mais ampla: a dos efeitos de género da I Guerra Mundial.

Um dos factos interessantes da relação entre movimentos de mulheres e os acontecimentos e processos da I Guerra Mundial foi a questão do pacifismo. Como descreveria o papel desempenhado pelas mulheres e pelas associações femininas e feministas no questionamento crítico da guerra? Isto foi trabalho de uma minoria dentro do movimento?
Antes da guerra, os movimentos de mulheres, socialistas e feministas, foram organizados à escala nacional e internacional, e as militantes, por ocasião de congressos internacionais, proclamaram o seu compromisso com a paz. Mas aquando da declaração de guerra, em todos os países beligerantes, elas associaram-se, na sua grande maioria, à União Sagrada [forma de trégua política que comprometeu organizações partidárias a aligeirar a luta e o protesto políticos face ao deflagrar da Grande Guerra, visível por exemplo em França, em Portugal e na Alemanha] e à ideia de uma guerra justa contra o campo antagónico.

Só uma pequena minoria de mulheres socialistas e feministas recusaram o belicismo, organizando-se para esse efeito a partir de 1915. A alemã Clara Zetkin reuniu em Berna, em Março de 1915, uma conferência internacional de mulheres socialistas que apelava às mulheres do proletariado para que recusassem a guerra; um mês mais tarde, o congresso internacional de Haia reuniu as feministas de países neutrais e as dos Estados beligerantes, minoritárias, por exemplo, as radicais alemãs.

Deste congresso, que define as condições de uma paz futura e permanente (arbitragem obrigatória entre nações, respeito do princípio das nacionalidades, educação pacifista das crianças, direito de voto das mulheres) nasceu um comité internacional, que iria tornar-se, em 1919, na Liga Internacional das Mulheres pela Paz e pela Liberdade, e comités nacionais expostos à repressão pelos beligerantes.

Ao lado dessas minorias organizadas, o pacifismo reúne alguns indivíduos, personalidades fortes como a francesa libertária Marcelle Capy, que, convencida da natureza maternal e pacifista das mulheres, denuncia por escrito os beneficiários da guerra, a lavagem cerebral ou os militares pouco cuidadosos com as vidas dos soldados.

Se algumas mulheres foram vozes críticas fundamentais contra a guerra, outras tornaram-se igualmente centrais na sua justificação moral e política. O compromisso patriótico foi um meio de melhorar a posição e o estatuto social das mulheres?
As feministas pensam-se como uma elite feminina. “Semeadoras de coragem” junto das mulheres, elas afirmam e propagam as justificações morais e políticas da guerra, já avançadas em vários lugares – em França, e em menor grau no Reino Unido, uma guerra do Direito contra a Barbárie alemã. Por outro lado, elas comprometem-se activamente em proveito das respectivas pátrias: contra o alcoolismo e a prostituição, pelas "obras de guerra" [dispositivo legal francês de solidariedade relativo às consequências do conflito (1916)] e mesmo por um recrutamento feminino.

Ávidas de integração – a principal reivindicação antes da guerra era o acesso aos direitos políticos – elas consideram que a guerra lhes permitiu fazer prova das competências das mulheres e obter a prazo novos direitos.

Um dos aspectos que a sua conferência tocou relaciona-se com o alargamento da violência sexual e sexualizada que caracterizou a dinâmica da guerra, nomeadamente a generalização da violação. Pode desenvolver este aspecto?
A história escreve-se sempre “no presente”: assim, o tema das violências sexuadas e sexuais é imposto aos historiadores com as guerras na ex-Jugoslávia. Mas continua ainda muito por fazer para compreender e medir a amplitude das violações durante a I Guerra Mundial, nomeadamente fora da frente ocidental.

O que aconteceu com a descendência deste tipo de violência?
Mais ainda está por conhecer no que diz respeito ao destino destas mulheres violadas e das crianças nascidas da violação. Na Bélgica e na França, as violações tiveram lugar durante a invasão pelas tropas alemãs, em resultado de um sentimento de impunidade, da afirmação de virilidade de grupo, da vontade de desmoralizar o inimigo. Nove meses mais tarde, a sociedade francesa divide-se, num debate violento sobre o peso respectivo do sangue e da educação, a propósito do destino reservado às crianças da violação, cujo abandono pelas mães é finalmente facilitado. 

A guerra implicou inúmeras transformações sociais, políticas, económicas e culturais no papel protagonizado pelas mulheres nas sociedades europeias. Quais foram as mais importantes?
Guerra longa e mortífera, a I Guerra Mundial teve necessidade de mobilizar as mulheres na retaguarda, para repor a marcha da economia após os primeiros meses de desorganização e para aprovisionar as frentes de armamento. As mulheres tornaram-se mais visíveis no espaço público, como carteiras, empregadas de café, entregadoras de carvão, funcionárias de bancos e da administração, condutoras e revisoras de eléctricos, substituindo os homens mobilizados. Elas entram igualmente nos sectores profissionais tradicionalmente masculinos como a metalurgia e a química (indústria de guerra). Por outro lado, muitas vezes elas têm de assumir os cargos da família sozinhas e fazem a aprendizagem da autonomia.

Mas se as filhas jovens puderam beneficiar de uma maior liberdade e de novas oportunidades, a experiência de guerra das mães de família é antes de tudo uma experiência de excesso de trabalho e de solidão afectiva.

Um dos grandes debates sobre o impacto da I Guerra Mundial gira em torno das suas consequências nas condições social, política e económica das mulheres no pós-guerra. A figura da garçonne, baseada num conjunto de traços que supostamente caracterizavam a mulher emancipada do pós-guerra, foi algo que analisou criticamente. A I Guerra Mundial foi emancipatória neste sentido?
A figura da garçonne faz referência a uma moda de indumentária – as saias encurtadas, as roupas mais maleáveis, a ausência do corpete dão efectivamente uma maior liberdade de movimentos ao corpo feminino – e mais ainda capilar (cabelos curtos, corte “coupe au carré”). Refere-se ainda à obra de Victor Margueritte publicada em 1922. La Garçonne conta as aventuras de uma jovem burguesa que, desiludida com as mentiras do seu noivo e pela hipocrisia do seu meio, afasta-se das convenções do seu meio burguês, tenta vários empregos, vive múltiplas experiências sexuais,  inclusive com outras mulheres, entrega-se aos prazeres da vida nocturna e dos paraísos artificiais; para descobrir progressivamente “a felicidade saudável” graças ao amor de um homem de bom coração, antigo combatente pacifista, com quem ela visiona casamento e procriação. “Fábula virtuosa” para o seu autor, romancista progressista então destituído da Legião de Honra, o romance, julgado como “pornográfico”, conhece o sucesso pelo escândalo.

Verdadeira metáfora da dissolução dos costumes em numerosos escritos da épocas, a “garçonne” do romance não é uma figura positiva. Mas a moda “à garçonne” democratiza-se e choca cada vez menos. Há ainda, nos anos 20, por causa do desequilíbrio entre os sexos devido à guerra, mais mulheres celibatárias activas e independentes, mas elas são muitas vezes mais sábias do que a heroína de Victor Margueritte.

No seu livro afirma que a guerra não foi “favorável a uma evolução dos papéis sexuais”. Porquê?
A questão do papel emancipador ou não da I Guerra Mundial tem derramado muita tinta. A resposta não pode ser senão matizada. Estou do lado dos historiadores e historiadoras que afirmam, “não, mas...”, em vez do “sim, mas...”.

A guerra modificou incontestavelmente as trajectórias individuais, por vezes num sentido emancipador, especialmente para as jovens filhas dos meios burgueses: assumir responsabilidades ainda jovem, estudar, ter um emprego, especialmente os novos empregos do sector terciário que se desenvolvem e se feminizam. Outras deixam a terra para conhecer as luzes da cidade. Mas para a maioria das mulheres, sobretudo se têm filhos a seu cargo, a guerra foi primeiramente uma experiência de excesso de trabalho e um momento de provações (solidão, luto, dificuldades materiais).

Mesmo se alguns países concedem o direito de voto às mulheres depois do conflito – não é o caso de França nem da Itália – o pós-guerra é marcado pelo culto do luto e do sentimento de dívida face aos soldados; as associações dos antigos combatentes querem exercer um papel político e moral; os sobreviventes querem encontrar as mulheres onde as haviam deixado quando partiram, não dotadas de novos direitos ou a trabalharem em lugares de homem. Por outro lado, o regresso de soldados feridos, mutilados, traumatizados psicologicamente criam situações familiares dolorosas.

Em França, onde a guerra legitimou uma política promotora da natalidade, a sociedade do pós-guerra espera que as mulheres repovoem o país. Em 1920 e 1923 são adoptadas leis repressivas contra a contracepção e o aborto. Culturalmente, a guerra reforça a dicotomia homem-mulher, combatente-mãe.

Há grandes figuras que sintetizam o papel crucial desempenhado pelas mulheres no combate ao entusiasmo pela guerra, como Emily Hobhouse, ou contrariando a razão de Estado, como Edith Cavell. A atitude desta durante a guerra é um exemplo louvável. A sua expressão “o patriotismo não é suficiente” devia ser repetida por muitos, e não devia ser esquecida. Apesar da sua inegável importância, considera que o papel das mulheres na I Guerra Mundial é ainda minimizado?
O papel de figuras femininas particulares, como aquelas que cita, e das mulheres no seu conjunto e diversidade deu lugar a numerosas pesquisas na maioria dos antigos países beligerantes. Contudo, os seus resultados não foram integrados nas histórias gerais da I Guerra Mundial, menos ainda transmitidos no ensino secundário ou nas emissões históricas dos meios de comunicação social.

O actual aparato comemorativo confere visibilidade e reconhecimento ao seu papel decisivo?
O Centenário, parece-me, é a ocasião para relembrar esse papel e de o dar a conhecer largamente. Em França, as primeiras manifestações culturais apresentaram sobretudo a guerra dos homens mas uma inflexão é notável: por exemplo, no outono de 2014, está programada para a televisão, em horário nobre, Elles étaient en guerre, um longo documentário onde fui a consultora histórica. No mesmo sentido, os institutos franceses na América Latina escolheram como tema de conferências “As mulheres na guerra”.
 

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"Só uma pequena minoria de mulheres socialistas e feministas recusaram o belicismo", diz Françoise Thébaud DR
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A Liga Internacional das Mulheres, em Washington DC em 1922 National Photo Company/Library of Congress
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Confraternização de militares portugueses do CEP com populares em Paris depois do armistício Arnaldo Garcez/Liga dos Combatentes
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Venda da flor para angariação de fundos para o esforço militar português na Grande Guerra Joshua Benoliel/AML
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Distribuição de bebidas quentes à chegada dos soldados a Lisboa no início de 1919 Joshua Benloliel/AML
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Soldados portugueses e populares no desfile da vitória, em Paris Arnaldo Garcez/Liga dos Combatentes
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