Anatomia dançada da errância de Ulisses

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Jorge Santos

Quando, para a bienal de Lyon de 2014, lhe encomendaram uma coreografia  inspirada na poesia épica de Homero, não foi sem alguma apreensão que Tânia Carvalho (Viana do Castelo, 1976) se decidiu pela Odisseia. Mas, em Tecedura do Caos, só encontraremos alusões fugazes à epopeia de Ulisses: serão, sobretudo, a repetição de  fluxos de movimento e atmosferas sensoriais a recriar a persistência indómita do herói ao longo dos dez anos de peripécias e contratempos que, finda a guerra de Tróia,  demoraram a sua viagem de  retorno  a Ítaca, onde o aguardava  a fiel e ardilosa Penélope, tecendo e desmanchando um sudário a fim de se esquivar  à investida  de outros pretendentes.

Mergulhada num curioso ambiente, denso e obscuro, quase opressivo, a convocar o expressionismo mudo da cinematografia de Murnau e o chiaroscuro da pintura renascentista, a peça é marcada por amplas vagas de movimentos de oscilação lateral de uma amálgama humana de 12 corpos, a deixar sempre para trás uma figura isolada, imagem da intrepidez solitária do protagonista. Um vaivém de rajadas sons electrónicos, que ora se impõem em altura e velocidade - o súbito ribombar de estampidos e a irrupção de clarões de luz a surgir detrás da plateia colocam-nos no centro de um temporal marítimo -, ora se diluem em fases de silêncio e calmaria. Um ruído de derrocada recorda-nos a vingança dos Ciclopes e a silhueta de um cego lembra a narrativa cantada de Demódoco. Assim acompanharemos a atribulada travessia de Ulisses, com ele atracaremos em portos temporários e sucumbimos à sedução de Calipso, ou prosseguimos viagem, contra ou a favor das congeminações dos deuses.

Se a composição coreográfica obedece principalmente a um algoritmo abstracto, nas faces crispadas, gestos mecânicos ou menções à estatuária helénica, há um forte elemento expressionista. Este Ulisses, metamorfoseado em vários intérpretes, serve de alegoria à sua astúcia lendária e à dissolução da personagem num colectivo: as armadilhas do orgulho, a cedência aos labirintos do desejo, resiliência e determinação do humano que, até hoje, fazem da Odisseia matriz das grandes narrativas universais.

Carvalho encontrou ainda nesta figura auto-superação, um paralelo com o romântico ideal de transcendência da dança académico-clássica, aí baseando o recurso constante a elementos baléticos na coreografia: pas-de-bourrée reformulados, braços ondulantes de cisne, fouettés ou formações de corpos de baile clássicos (aqui, a diversa indumentária de tule em tons sépia parece transfigurar-se em tutus românticos) irão culminar, no final da peça, numa revisitação da emblemática  morte do cisne.

Como Penélope, é com esta subtil “tecedura” coreográfica que Carvalho sustenta o “caos” errante do herói homérico, aí procurando um ponto de contacto entre o mito e a sua versão dançada. Embora plasticamente interessante, a dramaturgia não é, contudo, cabal a evidenciar conexões entre o ethos balético e a epopeia homérica. Requeria-se, por outro lado, uma mais eficaz introdução de novos elementos (como acontece quando a iluminação sépia sobre o grupo imóvel vira azulada e fria, transformando-o num quadro renascentista vivo) sem a qual a intensificação pretendida com o efeito da repetição dos fluxos coreográficos tende a enfraquecer, e com ela a possibilidade de se manter a ignição à nossa odisseia interior.

 

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