Adversários do Acordo Ortográfico reclamam referendo

Um fórum realizado na Universidade de Lisboa aprovou uma moção a defender que o Acordo Ortográfico de 1990 deve ser referendado. Os defensores do tratado acham que o esforço de unificação da língua compensa as eventuais imperfeições do AO.

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Adriano Miranda

A obrigatoriedade do uso do Acordo Ortográfico de 1990 (AO) no ensino e na administração pública deve ser imediatamente suspensa, e a sua eventual aplicação em Portugal deve ser depois submetida a referendo. É o que defende uma moção aprovada no fórum Pela Língua Portuguesa, diga NÃO ao ‘Acordo Ortográfico’ de 1990, que decorreu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) no dia 14 de Abril.

Os subscritores da moção acham que o AO falhou o seu objectivo de “unificação das variantes do Português” e que a “alegada simplificação” que trouxe “corresponde a uma total insegurança ortográfica”. Do outro lado, os que defendem o AO – incluindo o seu principal negociador pelo lado português, Malaca Casteleiro, que o PÚBLICO ouviu –, não negam imperfeições ou incongruências, mas acham que é um pequeno preço a pagar por uma ortografia unificada.

E, se o jurista Ivo Miguel Barroso tiver razão, ainda haverá algum tempo para discutir o assunto antes de se esgotar o prazo de transição estabelecido para a aplicação do AO. Na sua intervenção na FLUL, Barroso procurou demonstrar, contrariando a interpretação oficial, que esse prazo não termina em Maio próximo, mas sim em Setembro de 2016, já que os seis anos previstos não devem ser contados, defende, a partir da data em que se procedeu ao depósito da ratificação do 2.º Protocolo Modificativo do AO, mas da data da publicação no Diário da República (DR) do aviso dessa ratificação, o que só veio a acontecer em Setembro de 2010.

O jurista é também um dos dinamizadores de uma acção popular judicial levada ao Supremo Tribunal Administrativo, que requer a não-aplicação do AO no ensino público do 1.º ao 12.º ano, argumentando com a inconstitucionalidade da Resolução do Conselho de Ministros n.º8/2011, de 25 de Janeiro, que impôs o AO na administração do Estado a partir de Janeiro de 2012, e determinou que o acordo era aplicável ao sistema educativo logo no ano lectivo de 2011/12. “Espero que o tribunal tome uma decisão antes de começarem os primeiros exames, até porque se trata apenas de matéria de Direito”, disse Ivo Miguel Barroso ao PÚBLICO.

Tomada poucos meses antes de o Governo de Sócrates cair na sequência do chumbo do PEC IV, a resolução em causa antecipou em vários anos a aplicação do AO em sectores fundamentais da sociedade portuguesa e foi instrumental na criação de um facto consumado, levando, por exemplo, os editores de manuais escolares a adoptar um acordo ao qual muitos deles se tinham sempre oposto, como foi o caso de Vasco Teixeira, da Porto Editora.

Na reunião da FLUL, onde intervieram figuras como António Feijó, vice-reitor da Universidade de Lisboa, a ensaísta Maria Filomena Molder, o poeta Gastão Cruz, o escritor e colunista Pedro Mexia ou o humorista Ricardo Araújo Pereira, o intérprete na União Europeia Francisco Miguel Valada levou uma série de exemplos que parecem demonstrar que o AO veio criar instabilidade ortográfica onde esta não existia.

377 “fatos”
A par de inúmeros exemplos de erros de português que poucos dariam antes de surgir o AO, como “fato” ou “contato”, e que agora são frequentes em jornais e televisões, mas também em universidades ou no Parlamento – até o próprio texto do AO regista alguns –, Valada apresentou uma tabela em que conta o número de vezes que algumas destas grafias erradas ocorrem no Diário da República (DR). Em 2009 não aparece nenhum “fato” ou “fatos”, mas em 2012, o ano em que o DR começa a ser redigido segundo o AO, Valada detectou 377 ocorrências.

A tabela foi entregue na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República, mas sem nenhum resultado prático, explicou Valada. Um silêncio que simboliza a dificuldade com que se defrontam os que ainda não desistiram de tentar travar o acordo: do outro lado raramente encontram interlocutores para uma discussão séria sobre o conteúdo do AO.

“As vias políticas estão bloqueadas”, reconhece Ivo Miguel Barroso, lembrando que o tratado e os posteriores protocolos modificativos foram sempre aprovados “por largas maiorias” no Parlamento, que três Presidentes da República – Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva – o ratificaram, e que o actual líder da oposição, o socialista António Costa, é um assumido defensor do AO.

Garantido o apoio dos grupos parlamentares do PSD e do PS – apesar da oposição de alguns raros deputados, como Manuel Alegre –, e com o AO a ser aplicado há quatro anos lectivos no ensino e a generalizar-se cada vez mais na edição e nos media, é compreensível que os seus defensores não tenham interesse em promover agora uma grande discussão pública.

Entre as iniciativas promovidas nos últimos anos contra o AO, Valada recordou o Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa, uma petição lançada em Maio de 2008, e que um ano depois, quando foi apreciada no Parlamento, já tinha recolhido mais de 115 mil assinaturas válidas, entre as quais se contavam as de Eduardo Lourenço, Vitorino Magalhães Godinho, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Vasco Graça Moura ou José Pacheco Pereira.

E antes disso, em 2005, quando o Governo de José Sócrates se preparava para ratificar o 2.º Protocolo Modificativo – destinado a permitir que o AO pudesse entrar em vigor sem a ratificação de todos os países signatários do tratado original (Angola e Moçambique ainda hoje não o fizeram) –, foi pedido, através do Instituto Camões, um conjunto de pareceres a várias instituições e especialistas. Descontado o da Academia das Ciências, da autoria do próprio Malaca Casteleiro, todos os outros oscilavam entre as críticas severas e a sugestão de que o processo deveria ser imediatamente suspenso, como o fez a Associação Portuguesa de Linguística. O próprio Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), hoje o principal instrumento de aplicação do acordo, afirmava que o AO “terá sempre consequências bem mais graves que a existência actual de duas normas, sobretudo na língua escrita no âmbito da Internet”.

Fingir que não ouvem
Para os adversários do AO, este não unifica a língua, como se propunha, e ao admitir um grande número de facultatividades – “Electrónica e Electrotecnia” poderá ser escrito de 32 formas diferentes sem violar o AO – contraria o próprio conceito de ortografia. E lembram que as grandes diferenças que separam as variantes portuguesa e brasileira da língua não são ortográficas, são lexicais, semânticas e morfossintácticas.

Com diferenças regionais e índices de iliteracia pouco comparáveis com os de Portugal, o Brasil tem problemas próprios no domínio da língua que poderemos estar a importar com este acordo. É o que defende Ivo Miguel Barroso, que acha que “o AO é desnecessário” e que “mais vale haver duas variantes: entendíamo-nos perfeitamente, e agora um brasileiro lê ‘receção’ e não sabe o que é”.

Do outro lado da barricada, os defensores acham que a “deriva ortográfica” entre Portugal e o Brasil ameaçava o futuro do português como língua mundial e crêem que uma ortografia mais próxima da fonética facilita a aprendizagem. Uma convicção partilhada pelos três apoiantes do AO que o PÚBLICO ouviu.

O argumento clássico contra esta convicção é o das crianças inglesas, que aprendem com aparente sucesso uma ortografia cuja relação com a pronúncia é bastante remota. E Vasco Graça Moura, numa entrevista ao autor deste artigo originalmente publicada na revista Cão Celeste (e que poder ler no PÚBLICO online), lembra que “as desgraçadas criancinhas” alemãs aprendem a escrever palavras como “Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän” [“capitão da companhia de navegação do Reno e do Danúbio”]. E os alunos de gronelandês ocidental não têm melhor sorte. Francisco Miguel Valada trouxe ao fórum da FLUL, para a endereçar aos promotores do AO, uma palavra deste idioma, “Tusaanngitsuusaartuaannarsiinnaanngivipputit”, que em português significa, explicou, “não podem estar permanentemente a fingir que não estão a ouvir”.

O linguista João Malaca Casteleiro, negociador do AO e redactor da sua Nota Explicativa, admite que este “não é perfeito, não unifica completamente a ortografia, porque não foi possível”, e “tem algumas incongruências”. Mas defende que o acordo veio pôr fim a uma “deriva ortográfica que durava há um século”.

Salientando que se trata de um acordo, e não de uma reforma, diz que “se houve cedências etimológicas, o Brasil também cedeu na acentuação, suprimindo o trema, bem como os acentos agudos em palavras como ‘ideia’ e ‘assembleia’”.

De resto, a supressão das consoantes mudas parece-lhe positiva, uma vez que “não existem na pronúncia e não faz sentido mantê-las na escrita”. Mas também reconhece que, “se não houvesse esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na ortografia: os ingleses não mexem há muito tempo na deles, porque não tem sido preciso”. Se Portugal tivesse envolvido o Brasil na reforma de 1911, diz, “o problema tinha ficado resolvido”.

O conselho de Verney
Já o linguista Fernando Cristóvão acha que a oposição ao AO é “uma coisa doentia” e lembra que o acordo foi aprovado pela AR e ratificado por Mário Soares em 1991. E aos que o encaram como uma concessão ao Brasil, lembra que “as mudanças que se fizeram com este acordo já tinham sido reclamadas em 1746 pelo português Luís António Verney”, que na obra O Verdadeiro Método de Estudar defende que os portugueses “devem escrever a sua língua da mesma sorte que a pronunciam”.

Se Cristóvão é um defensor de que a ortografia se aproxime tanto quanto possível da pronúncia, já D’Silvas Filho, pseudónimo literário de um consultor do site Ciberdúvidas e autor do livro Prontuário - Erros Corrigidos de Português (Texto, 2012), embora tenha apoiado o AO “desde a primeira hora”, acha que este pode ter propiciado interpretações que "levaram longe de mais a prioridade ao critério fonético”. Uma crítica em que está sintonizado com os adversários do AO.

Já não subscreve, no entanto, outra crítica recorrente: a que censura a este acordo a proliferação de duplas grafias facultativas. Dada a impossibilidade de as evitar, o que parece crucial a D’Silvas Filho é que tanto Portugal como o Brasil incorporem nos seus vocabulários ortográficos nacionais ambas as variantes. E a sua posição é a de que qualquer grafia registada no Vocabulário Ortográfico Português é de uso legítimo em Portugal.

O linguista lamenta que os que se opõem ao AO “não vejam a vantagem extraordinária que há em unir a língua”, elogia os progressos do recém-apresentado Vocabulário Ortográfico Comum, que está a ser desenvolvido pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), da CPLP, e que congrega já os vocabulários nacionais de alguns dos países que ratificaram o acordo, e congratula-se por “estarmos a caminho de poder organizar um dicionário para esta língua planetária”.

Mas o seu entusiamo não o impede de criticar o que lhe parece menos conseguido. Preferia, por exemplo, que “pára” mantivesse o acento, ou que “braço-de-ferro” não tivesse perdido os hífenes.

“Devem fazer-se aperfeiçoamentos”, diz, e espera que se possa aproveitar o actual trabalho no âmbito do IILP para melhorar o AO, mas acha que, “depois de todo o trabalho feito, não faria sentido suspender o acordo” para o corrigir.

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