A identidade de David

Artistas austríacos, dinamarqueses e portugueses numa exposição notável

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Gregor Graf retoma a iconografia romântica da paisagem, uma matriz crucial da cultura germânica

Luísa Santos assina a curadoria desta exposição surpreendente não apenas pela qualidade das obras expostas mas também pelo conceito que lhe preside: a construção da identidade em países relativamente pequenos, vizinhos de um gigante poderoso, com o qual a História se fez via conflito e admiração. Portugal, Dinamarca e Áustria estão, os três, nesta situação; uma situação que poderíamos também metaforizar através da figura biblica de David, o pequeno pastor que enfrenta e derrota o enorme general do exército inimigo, Golias.

O que a história não nos conta, embora possamos sem grande dificuldade daí tirar ilações, é o modo como a criança David constrói a sua identidade a partir deste confronto. Daqui parece uma montanha também não, talvez porque essa construção é demasiado complexa para ser abordada por uma única peça, por uma selecção de criadores, por uma montagem problematizadora. Nesta exposição, que reúne artistas dos três países, não existe nenhuma citação política directa, como vem sendo habitual na arte, mas sim obras que trabalham o espaço, o conceito de paisagem, a casa como extensão de si e a identidade do artista. Luísa Santos, no texto de introdução à exposição, menciona uma série de binómios que atravessam o trabalho de todos os artistas por si escolhidos: grande/pequeno, realidade/aparência, observador/observado, conhecido/desconhecido. Ou, dito de outra forma, a escala, a visão, a imaginação, a ciência.

Dispostas em vários espaços do CAM, as obras captam em maior ou menor grau a atenção do espectador. Nenhuma se impõe em relação às demais: o conjunto convida-nos antes a uma observação atenta de cada vídeo, das fotografias, dos desenhos, das instalações. Na nave central, somos imediatamente atraídos por uma estrutura em gaiola (Jeppe Hein), aberta, onde devemos entrar — no centro, um espelho roda sobre si próprio, exibindo a imagem movente e circular do espaço, dos visitantes, da vista do jardim, de nós próprios. Ou então por uma peça cilíndrica da dupla AVPD (Aslak Vibaek e Peter Doessing) que alia a aparente leveza à sensação claustrofóbica no seu interior. Ou ainda, no hall de entrada, pelo guarda-chuva gigante de Katharina Lackner, cuja escala nos transporta para um suposto universo miniatural.

Outros artistas referem-se, muito explicitamente, à permanência da iconografia da paisagem na arte contemporânea, e alguns mesmo à tradição romântica do sublime materializado nesse género, tão importante nas regiões que gravitaram em torno da cultura germânica. É o caso de Gregor Graf, com uma série de fotografias de origem compósita que reproduzem os estereótipos relativos ao género divulgados pelo cartão postal, de Nuno Cera, que nas fotografias e no vídeo O Passageiro nos transporta para um meio primordial, oceânico, povoado de cavernas, e mesmo de Dalila Gonçalves, com dois delicados desenhos feitos com materiais inusitados: canetas Bic e ponteiros de relógio.

A peça de Miguel Palma transporta esta reflexão sobre o espaço para um nível diferente. Pays/scope (2012) era uma torre encimada por um telescópio gigantesco que, colocada no cimo desse ícone da modernidade que é a montanha Sainte-Victoire, nos dava a ver não o acidente geográfico, mas o espaço que o rodeia. Agora, o dispositivo projecta a nossa própria imagem numa parede da nave, mudando o nosso estatuto: de espectadores passamos a imagens da exposição.

Uma menção especial ainda para o vídeo notável de Claudia Larcher, Heim, que nos transporta para o interior de uma moradia onde a possibilidade de entrar na intimidade alheia se revela simultaneamente fascinante e perturbadora. Heim, cujo significado em alemão vai muito além da palavra casa, traduz um conceito de lugar próprio e pessoal que é também o lugar da identidade. Peças de Tove Storch e Anne-Louise Overgaard Andersen completam a selecção. 

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