The Doors em Lisboa: o novo olhar da serpente

Ontem Lisboa viu os Doors. Perdão, os Doors do Século XXI. O que é isso afinal? Como é que se ressuscita uma lenda? Eis perguntas que assaltavam as muitas pessoas que fizeram questão de presenciar o ritual de passagem para esta nova vida da banda. Depois do cepticismo de muitos, as conclusões: a máquina está bem oleada, as canções continuam hoje tão arrebatadoras como no dia em que foram tocadas pela primeira vez e Ian Astbury provou estar à altura da missão que lhe coube no destino: substituir o mito. Esse, Jim Morrison, pairou pelo Atlântico desde o início. Hoje à noite, a cerimónia repete-se.

A abertura do concerto faz-se com música épica a acompanhar o surgimento de um cartaz com a célebre imagem de Jim Morrison. A homenagem não poderia faltar e começa aqui. Segue-se “Roadhouse blues” e a multidão está conquistada. A partir daqui, deixa-se levar sem condições pelo novo xâmane e pelos velhos índios desta guarda: o guitarrista Robbie Krieger e o teclista Ray Manzarek.

Com “Break on trough” passamos de vez para o outro lado do espelho, para as areias do deserto por onde há décadas serpenteia a música imortal, sedutora e hipnótica dos Doors. Depois do embarque, são inevitáveis uns quantos arrepios colectivos criados pela música, elevados pelo ambiente e exponenciados pelas imagens caleidoscópicas projectadas em pano de fundo, aquelas que antes eram apenas invocadas e agora estão mesmo lá para nos hipnotizar. Como a serpente da canção.

Momentos houve em que o espectáculo ameaçou tornar-se um circo. Mas as duas horas de concerto fizeram esquecer isso e, a julgar pelos comentários finais, agradaram tanto aos fãs acérrimos como aos simples curiosos. Assim, a par dos êxitos do grupo, esteve também presente grande parte de “L.A. Woman”, o álbum que a banda nunca chegou a apresentar ao vivo pela perda de Jim Morrison. É a ele que dedicam os temas. Ele nunca deixou a sala. E encarnou nuns quantos corpos, o de Ian incluído.

Mas será que o projecto é válido sem Jim Morrison na dianteira? É ou não legítimo seguir em frente transportando as palavras desse poeta americano? E, afinal, Ian Astbury convence ou não na pesada tarefa de substituir o rei lagarto?

A resposta é sim e não. Não, não o substitui verdadeiramente. Aliás, não é essa a sua intenção. Nem tal seria possível. Jim Morrison era, é e será sempre o espírito-mor dos Doors. Mas não há dúvida de que Ian é talhado para o papel. Partilha do mesmo timbre e a parecença é arrepiante, daquelas de enganar os sentidos quando fechamos os olhos. No entanto, sabemos que não é um mero número de karaoke bem conseguido, porque já nos Cult a voz de Astbury era assim. E a postura é mais do que adequada: reverencial em relação ao espírito de Morrison e aos Doors originais, mas competente na sua função, com rebeldia q.b. que se percebe real e não forjada numa recordação.

Acrescente-se a isto o facto de Ian já conhecer bem o público português e não é difícil perceber que o grupo conseguiu agarrar o público sem dificuldade. O concerto não podia de facto ter corrido melhor. Mas nada podia preparar o público para a situação inédita do final. Depois do inevitável “Light my fire” – já em encore – as luzes acendem-se e as pessoas começam a dirigir-se para a saída enquanto Ian está mergulhado nas filas da frente.

Quando tudo parece terminado, a banda volta para tocar mais uma. Aí vem “Soul kitchen”, tocada em plena luz, com a possibilidade de ver os movimentos de todo e cada um dos presentes em qualquer ponto do pavilhão. Aí sim, sem luzes coloridas, sem caleidoscópios, sem músicas épicas. Sem artifícios.

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