“Situações excepcionais” ou “repressão”? Protestos pelo clima levaram polícia de volta às universidades

Duas cartas abertas criticam chamada das autoridades para interromper protestos dos activistas. “Não tinha outra maneira de garantir a segurança”, justifica o reitor da Universidade de Lisboa.

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Desde segunda-feira, a PSP foi chamada várias vezes a diferentes faculdades. Esta sexta-feira esteve na reitoria da Universidade de Lisboa Daniel Rocha
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Durante quase 50 anos, as instituições de ensino superior foram um espaço quase sagrado no que à actuação das autoridades policiais diz respeito. A memória da repressão do Estado Novo sobre os protestos das crises académicas estabeleceu uma regra não escrita: a polícia não entra nas universidades. Mas, nas últimas semanas, uma nova vaga de manifestações pelo clima veio pô-lo em causa. “Repressão” pior que a ditadura, acusam os activistas. “Situações excepcionais”, defendem-se os reitores.

Desde segunda-feira, o movimento Greve Climática Estudantil convocou uma “onda de acções” em escolas secundárias e universidades pelo “fim ao fóssil”. Nos últimos dias foram várias as manifestações em instituições de ensino. A PSP foi chamada a intervir, por duas vezes, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, e também na Faculdade de Psicologia, da Universidade de Lisboa (UL).

Esta sexta-feira, as autoridades policiais foram novamente chamadas, desta feita para a reitoria da UL, ocupada por um grupo de activistas, depois de uma manifestação na Alameda da Universidade.

Cartas abertas e fachadas pintadas

A decisão dos directores das faculdades – ou do próprio reitor, no caso mais recente – mereceu críticas por parte de professores e investigadores do ensino superior e também intelectuais. “Chamar a polícia para dentro de uma faculdade”, escrevem os autores de uma Carta Aberta que o PÚBLICO divulga esta sexta-feira, “é dizer à comunidade estudantil que o que dela se espera é obediência e nenhum questionamento”.

O documento foi lançado por iniciativa do grupo Frente Grisalha pelo Clima e foi subscrito por mais de 300 pessoas, entre docentes, cientistas e profissionais do mundo das artes.

Alguns dos nomes dos investigadores repetem-se numa outra Carta Aberta, desta feita dirigida à Direcção da FCSH, em que os argumentos vão no mesmo sentido: fala-se em “preocupação” com o sucedido “tão maior ao verificarmos que a acção policial foi solicitada pela direcção da faculdade”. “De que tenhamos conhecimento, foi a primeira vez que tal ocorreu na história da instituição.”

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Em Novembro do ano passado, estudantes do movimento Fim ao Fóssil, Ocupa! colaram-se na entrada do Ministério da Economia e a polícia foi chamada para as retirar Nuno Ferreira Santos

“Não reconhecemos a FCSH nestas atitudes”, prosseguem os autores do documento. “Esta não é a faculdade que ainda recentemente, através de um mural, veio homenagear a Revolução de Abril e Salgueiro Maia.”

Os activistas que, esta sexta-feira, invadiram a reitoria da Universidade de Lisboa referem-se à situação como “a maior repressão ao direito de manifestação estudantil desde o Estado Novo. “Os ataques à democracia nas escolas e nas faculdades deviam ter ficado lá atrás, a 24 de Abril”, escreve, por seu turno, a Juventude Comunista, num comunicado.

O 25 de Abril e a ditadura não são um pormenor nesta história. A memória da repressão policial nas universidades durante o regime de Salazar e Caetano, particularmente durante as crises académicas, está “bem presente” nas instituições de ensino superior. É o próprio reitor da Universidade de Lisboa, Luís Ferreira, quem o diz ao PÚBLICO.

“Os nossos professores mais antigos ficam com os pêlos todos eriçados quando se fala de polícia”, reconhece. No entanto, justifica, estão em causa “situações excepcionais”, que justificam a chamada da PSP.

Luís Ferreira acusa os activistas de “destruição de património público”. Na sexta-feira, a fachada da reitoria foi pintada. “Todos os dias limpámos paredes”, queixa-se também o reitor.

“Não estamos a falar da mesma polícia”

O outro motivo “excepcional” que, para o reitor da maior universidade nacional, justifica a intervenção das autoridades são “disrupções para lá do aceitável” no dia-a-dia das instituições de ensino, seja impedindo a realização de exames ou a defesa de dissertações de mestrado ou doutoramento.

O reitor da UL usa ainda outro argumento para tentar distanciar a chamada das autoridades às instituições nos últimos dias da memória da repressão do Estado Novo: “não estamos a falar da mesma polícia”. “A PSP de hoje é muito mais preparada. A primeira intervenção é pedagógica, tentam falar com as pessoas.”

Ao contrário de Luís Ferreira, o novo presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, Paulo Jorge Ferreira, não quis fazer declarações sobre o tema.

A actuação policial dos últimos dias nas universidades também mereceu críticas do Livre, pela “manifesta desproporção nos meios utilizados e no tipo de força empregada, face ao que estava em causa: exercício pacífico do direito de opinião e de manifestação”.

Por isso, o deputado do partido, Rui Tavares, enviou uma pergunta parlamentar ao ministério da Administração Interna, pedindo esclarecimentos sobre “o que levou a considerar os eventos uma ameaça tal que exigisse tamanha afectação de meios” e “as medidas aplicadas, que aparentam ser desproporcionais e desproporcionadas”, solicitando a abertura de inquérito aos factos.

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