Keersmaeker, a luz que nasce com a manhã

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Cesena AFP

Anne Teresa de Keersmaeker convidou Avignon para acordar com ela. Na Cour d"Honneur, às quatro e meia da manhã, duas mil pessoas assistiram a Cesena, ou a passagem das trevas para a luz, num dos mais belos gestos coreográficos da artista belga, que regressa ao que já lá estava no início do seu percurso: um corpo sem artifícios. Vamos poder ver a peça, na versão para palco, em Lisboa e Guimarães em Junho 2012.

Um gato desce as escadas da plateia da Cour d"Honneur. São cinco da manhã. Um silêncio expectante pesa sobre a sala, cheia de duas mil pessoas. No palco, ao centro, distingue-se um enorme círculo de areia. Ouvem-se passos, o arrastar de pés. Um homem canta. Depois percebemos que corre em torno do círculo. A única luz é aquela que a noite traz. Depois chegam outras figuras. Não se percebe quantas, nem se são homens ou mulheres. São silhuetas que atravessam o palco numa coreografia quase invisível, antiespectacular, detalhista. Vão cantando e movendo-se, bailarinos e cantores num mesmo movimento e tom. Vão-se imobilizando, resgatando de uns o movimento de outros, numa fragilidade que só a imaginação pode perceber.

A intuição que nos leva a perceber que aqueles corpos desenham formas e são, ao mesmo tempo, a forma, o tempo e o espaço, é a mesma que nos conduz através da luz que demora a instalar-se, como se fosse interdito ver claramente o que fazem. Há uma dança que, com a passagem da noite para o dia, das sombras para a luz, se torna mais livre, fluida e ligeira, numa evolução lenta, subtil. 

Uma experiência hipnótica, mágica, individual, irrepetível diziam, no fim, espectadores emocionados, agradecidos a Anne Teresa de Keersmaeker, figura-chave de uma obra feita para 19 bailarinos, seis deles também cantores do Graindelavoix. O nome do colectivo belga, a partir de uma frase do filósofo Roland Barthes, parece explicar bem o que é Cesena: "O grão é o corpo na voz que canta, na mão que escreve, no membro que executa." 

Cesena prossegue En Attendant, o trabalho que Anne Teresa de Keersmaeker apresentou o ano passado em Avignon, já usando como base musical uma corrente de música polifónica surgida no Sul de França no fim do século XIV chamado ars subtilior, com notas médias ditas impossíveis de cantar e, por isso, normalmente tocadas por instrumentos. Em conferência de imprensa, em Avigon, Keersmaeker explicou: "Estava reticente porque pensava, a partir de conhecimentos muito reduzidos, que esta música, sagrada, me perturbava e me fazia ter medo. Depois percebi que era muito próxima de muitos dos meus gostos e preocupações: um contraponto complexo que se dissimula numa expressão refinada." Quase rarefeita, acrescentaríamos, num gesto menos determinista do que nas coreografias onde usou obras de Mozart, Schönberg ou Steve Reich. Como se, pela música, procurasse compreender o movimento. A própria ideia do canto esteve presente em peças anteriores, como Keeping StillThe Song3Abschied, mas, agora, matéria para entender, de forma mais profunda, o homem.

Música e movimento

"O século XIV é um período de grande mudanças", explica a coreógrafa numa entrevista publicada no programa do festival. "Filosoficamente, estamos no raiar das ideias revolucionárias. Mas tudo isto se opera num ambiente de caos e perturbações: a peste, a guerra dos cem anos, a transformação da sociedade feudal..." 

É por isso que Anne Teresa considera que as canções "são de uma complexidade pouco evidente". E que, na conferência, diz que "a matéria que as separa as liga a coisas que já pensava há muito tempo". Bjorn Schmelzer, o director musical, acrescenta: "Não é exagerado evocar uma mutação comparável ao desenvolvimento da imagem em movimento no século XX. Há um léxico que se desenvolve para evocar uma aceleração, o afecto, o cromatismo e todo um conjunto de novas noções". 

O modo como a coreógrafa combina a música com o movimento, transformando-o numa só forma e massa, tem muito a ver com o que as próprias canções estão a contar. A selecção musical foi centrada sobretudo em dois manuscritos da Idade média, o Codex Chantilly, com mais de cem peças, e o Codex de Chipre, com mais de 300 peças. Evocam a Grande Cisão do Ocidente, que levou ao fim do papado em Avignon, após o massacre de Cesena, no Norte italiano. Comandado pelo Papa Gregório XI entre 1375 e 1377, ficou como um dos repressivos momentos do clericado papal, dizendo os relatos terem sido mortos entre 2500 e 5000 civis.

E é desta forma que a selecção das músicas se relaciona com a escolha do elenco e a própria opção de apresentar o espectáculo de madrugada, esperando o nascer do sol. Como se pudéssemos perceber, através daqueles corpos que vão desfazendo gestos sem por uma vez cederem, como diz uma das canções, que "se a carne é abandonada pela alma apaixonada, o homem é dado como morto".

No início, conta a coreógrafa, esteve o desejo de prolongar, "de forma mais elaborada", o que havia experimentado em 2009 com The Song, "um trabalho sobre o silêncio com bailarinos masculinos, numa grande economia de meios". 

Longe vão os tempos em que Anne Teresa dizia não saber coreografar para corpos masculinos, por lhe serem distantes. Com o tempo aprendeu a distinguir "a energia transformadora que os torna luminosos", em oposição ao peso e à brutalidade. Agora, não apenas eles estão presentes como ocupam, de diversas formas, o que é apresentado. 

Ao longo de algumas das últimas peças, a coreógrafa acredita vir perseguindo "um ideal de ligeireza, de superação do peso e de resistência à gravidade" que, de certa forma, em Cesena, simboliza "a passagem da noite para a luz". 

O que a luz vai permitindo descobrir são movimentos que recuperam a sua circularidade, desmontando o ponto de vista bidimensional que a linearidade sugere. Assim, parecem procurar constituir-se como base para o encontro entre a imagem e o seu significado. Para Keersmaeker estão presentes as mesmas questões que surgiram quando começou a coreografar: "Qual é a natureza do corpo? Qual é a natureza do espírito? Qual a ligação entre os dois?" 

E explica: "Escolho, propositadamente, um vocabulário que se sustenta em elementos muito simples, como a marcha, que permite deslocar-me no espaço, intensificando ou distendendo as ligações sociais [entre os corpos]. Mas a marcha é também uma forma de dividir o tempo e de o quantificar a cada momento. É, por isso e ao mesmo tempo, o espaço e o tempo inscritos no meu corpo." Esta opção, acrescenta Bjorn Schmelzer, faz ecoar a própria relação que as canções do século XIV tinham com a marcha e o galope: "A marcha foi sempre um bom parâmetro para definir a velocidade e a lentidão."

É por isso que "fazer uma criação a partir de cantos do século XIV é também uma forma de fazer ressurgir as memórias do corpo, e as várias camadas que o compõem". "Tomamos como ponto de partida aquilo que de mais individual temos enquanto seres humanos. É um corpo que não se alterou ao fim de séculos, mas que, ao mesmo tempo, se modificou através do tempo."

Regresso ao início

"O fundamental, para mim, é ir à procura da coreografia da voz", explica. "Muitas vezes a ópera é muito aborrecida, mas quando a voz e a música se encontram, há um outro instrumento que surge. O mais simples, o mais rico e o mais difícil de trabalhar, porque aparece ao mesmo tempo que desaparece: o corpo." "Não tenho medo de arriscar nessa liberdade do corpo", sublinha. 

A ideia de uma coreografia feita a partir de música repetitiva, o próprio movimento sendo, também ele, repetitivo, que constituiu a primeira fase do trabalho de Anne Teresa, está também aqui presente - num ano em que, não por acaso, remonta em Avignon Fase, de 1982. "É como se decidisse desembrulhar o papel onde me guardei e voltasse a convencer-me de que com o corpo, e a capacidade de o corpo comunicar, não precisamos de mais nada."

Bjorn Schmelzer explica: "A relação entre a notação e o que não está escrito, ou seja, entre o saber e o fazer, permite ao intérprete reviver uma obra para lá da partitura, da ornamentação, da improvisação, do fraseado e do gesto. Confiar todo o tecido polifónico às vozes obriga-os a uma articulação, e a uma precisão meticulosa, que os fragiliza. Fazem-nos pensar neles como a vulnerável emanação do corpo."

É também disso que Anne Teresa fala quando se refere a um movimento "sem pesos nem artifícios". "Acredito realmente, apaixonadamente, nas potencialidades retóricas do corpo e, por isso, prefiro reduzir ao mínimo os figurinos e as luzes." E a luz, aqui, surge apenas quando os primeiros raios de sol são captados por uma prancha metalizada que alguém segura no topo de uma das ameias do palácio dos Papas e os faz entrar para o palco. É um momento de suspensão da respiração. E os bailarinos, num fraseado que joga com a presença desse corte na escuridão do palco, partem dela para uma unificação simbólica dos corpos. O indivíduo torna-se no colectivo. 

É um regresso ao início do trabalho da coreógrafa: "Em Fase havia uma preocupação geométrica subjacente, bem como uma economia de meios e, em suma, um minimalismo que podemos encontrar nas peças mais recentes." Tem a ver com a forma como "uma emoção pode surgir quando lhe é incorporada uma ideia abstracta". "A emoção não nasce da simples expressão de uma ideia, mas surge pela observação da capitalização do movimento no corpo."

Declarações recolhidas na conferência de imprensa, encontro com o público e entrevista incluída no programa.

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