França quer julgar como crime comum a expressão de opiniões racistas

Plano contra o anti-semitismo e o racismo divulgado por Manuel Valls é criticado: se esta lei já existisse antes, Charlie Hebdo teria sido julgado em processo sumário por causa das caricaturas de Maomé.

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Manuel Valls e a ministra da Educação, Najat Vallaud-Belkacem, em Créteil, no lançamento do programa Philippe Wojazer/REUTERS

A França é racista? Sim, dizem todos os estudos e provam-no as explosões de violência: desde o início do ano, aconteceram 226 actos contra muçulmanos, seis vezes mais do que ano anterior, e em 2014 o número de actos contra judeus foi o dobro de 2013. Por isso, o Governo de Manuel Valls lançou nesta sexta-feira um plano para lutar contra os vários discursos do ódio. Mas as medidas previstas não são isentas de críticas.

“Estão a aumentar de forma insuportável o racismo, o anti-semitismo, o ódio aos muçulmanos, aos estrangeiros”, afirmou o primeiro-ministro Manuel Valls. “Eu e Najat Vallaud-Belkacem [a ministra da Educação, que estava ao seu lado] nascemos no estrangeiro”, afirmou Valls, que é de origem espanhola e foi por isso alvo de Jean-Marie Le Pen, o fundador do partido de extrema-direita Frente Nacional, numa recente entrevista.

O plano lançado pelo governo de Valls responde à promessa de tornar “uma grande causa nacional” a luta contra o racismo e o anti-semitismo feita pelo Presidente François Hollande após os atentados terroristas de Janeiro em Paris, contra o jornal satírico Charlie Hebdo e um supermercado judaico, nos quais morreram 17 pessoas.

“É através da educação, da pedagogia e da compreensão do outro que se poderá contrariar as ideias feitas e as imagens negativas”, sublinhou o chefe do Governo, no liceu Léon Blum de Créteil, nos arredores de Paris, uma cidade onde em Dezembro um casal judeu foi agredido e roubado em sua casa por jovens muçulmanos, com base nessas ideias feitas. A mulher foi violada e a casa virada do avesso, em busca de dinheiro: “Dado que a minha família é judia, pensavam que éramos ricos, e que não guardávamos o dinheiro no banco”, contou ao Le Monde o marido.

Em França, onde vive a maior comunidade judaica europeia, de 600 mil pessoas, 85% dos cidadãos considera-os cidadãos iguais a todos os outros. Mas os velhos preconceitos continuam bem enraizados, revela o relatório da Comissão Consultiva dos Direitos do Homem, divulgado já neste mês. Seis em cada vez franceses acha que os judeus “têm uma relação especial com o dinheiro (mais dois pontos que em 2013), 33% acha que “têm demasiado poder” em França e 56% acha que, para estes cidadãos, “Israel é mais importante que França”.

Quanto aos muçulmanos, 48% dos franceses considera que “formam um grupo à parte do resto da população”. Apesar de metade dos inquiridos achar que se deve facilitar o culto muçulmano – sem pôr em causa que França deve continuar a ser um país cristão, dizem 72% - a verdade é que 92% estão completamente contra o uso do véu pelas mulheres muçulmanas. E essa oposição cresceu 5 pontos desde 2010.

Aliás, o secularismo é sobretudo entendido como a interdição do uso de qualquer sinal exterior da sua religião e não como a neutralidade do Estado face ao livre exercício da religião.

Reprimir rápido

Para além de uma grande campanha nacional que será lançada no Verão, o objectivo é reprimir e punir mais duramente a expressão de opiniões e actos racistas, através de cerca de 40 medidas articuladas em torno da justiça, da escola e da Internet.

Criar uma “unidade nacional de luta contra o ódio na Internet”, composta por agentes da polícia judiciária, encarregue de detectar e seguir acções e opiniões racistas e anti-semitas na Web é um dos objectivos. Mas uma das medidas mais significativas – e polémicas – é passar a julgar as injúrias racistas e anti-semitas ao abrigo do Código Penal e não da Lei da Liberdade de Imprensa.

Tornar os processos mais rápidos é o objectivo desta medida, mas há organizações e figuras ligadas à defesa da liberdade de expressão que não concordam nada com ela.

Se o Charlie Hebdo fosse de novo a tribunal por publicar as caricaturas de Maomé, disse ao Libération Richard Malka, advogado do jornal satírico, “poderíamos ser julgados num processo sumário, entre um escroque e um traficante, sem que se tivesse consciência de que o respeito pelo princípio da liberdade é mais importante do que a mera repressão”. “É absurdo que tenham morrido jornalistas por causa da liberdade de expressão e que uma das primeiras medidas do Governo seja atentar contra a liberdade deste jornal”, declarou.

A Liga dos Direitos do Homem e o SOS Racismo também estão contra a nova lei. “O problema da repressão dos discursos racistas é a dificuldade de provar que são delitos. Encaixá-los no direito penal não mudará nada”, disse Dominique Sopo, presidente desta última associação.

Mas Alain Jakubowicz, presidente da Liga Internacional Contra o Racismo e o Anti-semitismo está de acordo com o Governo. “A percepção destes delitos deve mudar na opinião pública. Os políticos não se cansam de dizer que ‘o racismo não é uma opinião, é um crime’. Mas porque é que continuamos a julga-lo como um delito de opinião, e não como um verdadeiro crime?”, interrogou, em entrevista ao Libération.

Este novo pacote anti-racismo não deverá trazer nada para lutar contra o maior alvo do racismo dos franceses, segundo o relatório da Comissão Consultiva dos Direitos do Homem: os ciganos, imigrantes de Leste: 77% dizem que estes “vivem essencialmente do roubo e do tráfico” (uma opinião que subiu 6 pontos em dois anos) e 81% acha que “exploram frequentemente os seus filhos". Apesar de serem uma pequena maioria (15 mil a 20 mil pessoas, ou 0,03% da população francesa), são a mais rejeitada.

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