Arte de Fugir do Tempo

Numa das muitas cartas que escreveu ao irmão, Van Gogh confessou que "As Respigadoras" de Millet era um dos quadros que mais o impressionava. O mesmo parece ter acontecido com Agnès Varda que, a partir desta obra, realizou um filme intimista, quase um diário, sobre respigar, ou seja, recolher os restos que ficaram no campo depois da colheita. A partir daqui, e em voz "off", a realizadora conta e mostra a viagem por cidades e aldeias francesas à procura de quem aproveita os restos da vindima, da apanha da batata, da ceifa, e também os móveis que se deitaram fora, ou os desperdícios de um mercado ao ar livre. Mas, em quase todas as cidades onde vai, Agnès Varda procura um quadro, uma pintura. Quando não é a própria pintura que vem ter com ela.

Respigadora de imagens, a realizadora é, também, uma observadora da arte, esse meio privilegiado de fintar da morte, de permanecer quando tudo o que constituiu a vida e a actividade do artista já não existem. "O Juízo Final" de Van der Weyden, por exemplo, é longamente observado, talvez porque o tema se liga tão bem com essa função que a arte possui. No local onde está exposto, os pormenores do quadro podem ser vistos através de um dispositivo com uma lupa. E é através da lupa, duplo da objectiva da câmara de filmar, que a realizadora nos dá a ver condenados e santos, anjos e demónios.

E depois, para além do documentário sobre os respigadores e as respigadoras de hoje em dia, há um olhar surpreendido sobre a passagem do tempo, sobre o corpo. As imagens, obtidas atrávés de uma câmara digital, vão fixando o que testemunha a passagem do tempo: as raízes brancas dos cabelos pintados da narradora, uma pose de retrato fotográfico, mais ou menos sorridente, mas implacável na revelação da velhice e da idade. Ou as manchas das mãos, as veias salientes e as rugas, e a constatação, como ela diz, de que o seu corpo acaba por lhe aparecer como um animal estranho. O tempo que passa deixa as suas marcas, e a câmara de Agnès Varda mais não pode fazer do que as fixar antes do desaparecimento total.

Aqui, como noutras cenas do filme, o trabalho de respigar é quase um trabalho de detective. E, se algumas cenas do filme são estáticas, nestas últimas o movimento da câmara leva-nos a descobrir os segredos de cada moderno respigador, como aquele personagem que comia salsa tirada do lixo de um mercado, e que se a narradora segue até descobrir a sua profissão. O achado de uma cópia do quadro inicial num armazém de velharias decorre do mesmo processo. Mas a pintura não possui movimento, ao contrário do cinema, e este é também um filme sobre a pintura, além de ser sobre o próprio cinema... Na belíssima cena final, centrada, simétrica, composta como um quadro, estática, em que se ouve apenas a voz de Agnès Varda, mostra-se um dos objectos encontrados na rua que ela acaba por levar para casa. O objecto, que sintetiza o tema do filme, é um relógio de mesa sem ponteiros.

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