Vida digital

Se algumas figuras históricas tivessem vivido na era do Facebook, provavelmente o mundo como o conhecemos seria bem diferente.

Júlio César daria conta dos seus passos diários de forma altiva: “Tenho a informar os meus amigos que hoje à tarde vou apresentar o meu novo livro onde explico como bati os helvéticos, germanos e bretões. Apareçam!” Cleópatra possivelmente poria frases essencialistas – “Quero viver cada minuto como se fosse o último” – acompanhadas de fotos onde surgiria fatalmente envolta numa névoa. Maria Antonieta aproveitaria para desabafar: “Hoje o meu marido perdeu literalmente a cabeça.”

Hoje não temos personagens tão ilustres a animar o quotidiano das redes sociais, mas a galeria de notáveis é extensa. Alguns iluminam-nos. Outros colocam à prova a nossa paciência, embora, verdade seja dita, é fácil convertermo-nos num deles, sem querer.

Existem os obsessivos, que partilham tudo, desejando que saibamos onde estão, com quem, e porquê, literalmente, a todo o momento. No extremo oposto, há os vigilantes, que quase nunca dão sinais de vida, nunca actualizam o seu estado e não põem fotos, mas que, de repente, vindos do nada, põem um like numa foto nossa partilhada há três anos, o que pode ser inquietante. 

Os que influenciam o ambiente digital têm milhares de amigos que a cada actualização colocam centenas de likes e dezenas de comentários, mesmo que nem sempre se perceba porquê. Os pais babados inundam-nos com fotos, o mesmo acontecendo com os ostentosos, sempre prontos a provar que a sua vida é um carrossel de aeroportos, hotéis e festas privadas, fazendo questão de mostrar que, para eles, o excepcional, é apenas rotina.

Os destruidores têm apenas uma missão: destilar fel, embora no fundo a única coisa que procurem seja um like.  Não falo de divergências de opinião, ou até de picardias, ou de dificuldades de comunicação e de nos fazermos entender. Não é isso, porque isso, meus amigos, é a vida. Falo daquele tipo de comentários insultuosos que presidem a uma agenda da parte de quem os profere e que nada têm a ver com o que se discute realmente.

Por norma nunca apago esses comentários nitidamente nocivos. Pelo menos na minha fantasia responsabiliza quem os profere, ao mesmo tempo que os expõe. O meu único gesto é permitir-me não responder, porque tudo o que sejam formas de relação – em qualquer lugar – que não suponham uma afectação positiva, marcada pelo desejo de compreender e pensar são dispensáveis.

Mas existem sempre excepções para confirmarem a regra. Há alguns tempos, estava eu tranquilo com as minhas certezas, quando alguém me dirigiu um desses comentários insultuosos. Tranquilamente, não respondi. Mas ele voltou à carga no dia seguinte, acusando-me de não ter apagado o seu comentário, para assim eu poder mostrar, perante a minha comunidade de amigos, que era alguém tolerante e não consensual. 

Ou seja, acusou-me de estar a instrumentalizar o seu insulto, não o apagando. Até certo ponto gostei da atitude. Denotava algum esforço para reflectir e até para se relacionar, por caminhos tortuosos é certo, comigo. Não lhe respondi. Mas sorri.

 

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