Reflexões sobre vários fins do mundo

Saiu um estudo segundo o qual cada pessoa consulta o seu smartphone cerca de 200 vezes por dia. Como é evidente, significa que a humanidade se encontra em acelerado processo de autodestruição.

Vai ser como nas outras ocasiões em que um avanço tecnológico alienou a espécie humana. Ou a espécie mesmo antes da humana: na Etiópia foram encontrados gatafunhos que, traduzidos, relatam a calamidade que se abateu sobre uma tribo de Homo Erectus, quando apareceu o fogo.

“Crog enlouqueceu! Já não ingere nenhum alimento que não tenha passado pelo tal de ‘fogo’. A carne fica quente. E com um sabor esquisito. Chega a ser tenrinha! No-jen-to! E as maneiras dele à mesa? A falta de etiqueta é tal que o Crog nunca mais partiu um dente a mastigar! E raramente sufoca com comida. Nas raras ocasiões em que se engasga, nunca perde os sentidos. Crog é um anti-social.

Mais: agora que há luz mesmo depois de o sol se pôr, Crog acha que conversar em frente a ‘fogo’ é giro. Eu quero é dormir, pá! Crog diz que ‘fogo’ também serve para afugentar os leões. Por causa dessa brincadeira tem morrido muito menos gente e a savana começa a ficar sobrelotada. Já não consigo caminhar quatro semanas sem encontrar logo outra pessoa.”

Não foi só o fogo. Eis excertos de um diário cuneiformado há mais de 5 mil anos em tabuletas de barro cozido.

“Mesopotâmia, 3 de Março de 3647 a.C. Querido diário, desde que Malec-Urduk atou um boi a um caixote e o caixote àquela tal de ‘roda’, transporta muito mais cereais numa viagem do que nós num dia inteiro a alombar com as sacas. Está convencido de que aquilo é uma vantagem, mas nunca mais o vi fazer uma das pausas devido a desmaio causado por exaustão. Quem é que se está a rir, quem é?

E os passeios, que já não se saboreiam? Só demoramos 12 dias até Karlac, não há tempo para uma conversa decente. Está um anti-social.”

Mas na história há mais episódios dramáticos, como este descrito por um mercador de Colónia numa carta à sua mulher, em 1467:

“Estou preocupado com o nosso filho. Desde que descobriu isto da ‘imprensa’ está sempre a ler livros. Chega a levá-los para a casa de banho. E folheia-os às refeições. Distrai-se e deixa a comida arrefecer. Que graça tem a comida fria? Imagina que até já o apanhei a ler na cama. Mas não é o único. Parece que saiu um estudo que diz que, na Europa, as pessoas consultam um livro mais de 200 vezes por dia! Para quê? O nosso filho está a tornar-se uma dessas pessoas que adquiremconhecimentos pelo simples gosto de os terem. Já não consigo ter com ele uma conversa desinteressante. Tornou-se um anti-social.

A parvoíce da leitura estava circunscrita, mas temo que se vá espalhar. Cada vez é mais difícil encontrar uma pessoa a olhar para ontem ou a pensar na morte da bezerra. Que mundo é este, em que deixamos de reflectir sobre o falecimento de uma vitela para reflectir sobre um livro? Um mundo em que, em vez de se dedicar à observação do dia anterior, há quem prefira ler?

Quando chegar a roda nova da minha carroça, vou a casa desse palerma do Gutenberg e incendeio-lhe a oficina.”

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