Os cidadãos e a gramática

Talvez não tenha sido muito feliz a criação do termo “igualdade de género”, pois as pessoas não são palavras, sendo mais adequada a expressão “igualdade de direitos, deveres e garantias entre sexos”, e, quanto ao “Cartão de Cidadão”, esta designação naturalmente que engloba todo e qualquer cidadão.

Recentemente, tem sido objecto de discussão a denominação do Cartão de Cidadão, documento por meio do qual, em Portugal, se procede à identificação das pessoas, verificando-se em diversos artigos, e invocando-se a “igualdade de género”, alguma confusão entre sexo e género, pelo que talvez valha a pena distinguir estes dois conceitos e explicar como funciona a língua portuguesa (e respectiva gramática) no que diz respeito à designação dos seres e das pessoas em geral.

Como ponto prévio, convém referir que o signo linguístico é arbitrário, o que significa, genericamente, que a designação de um determinado objecto, ser, fenómeno, etc., obedece a alguma convenção, variando de língua para língua. Observe-se, por exemplo, que “o mar” (palavra do género masculino em português) corresponde a “la mer” (feminino em francês) e a “the sea” (sem género em inglês) e que “uma criança” (palavra do género feminino em português, independentemente do sexo da criança em causa) corresponde a “un enfant” (palavra masculina em francês) e a “a child” (palavra sem género em inglês): como se vê, palavras diferentes e de diferentes géneros para designar a mesma realidade.

Assim, é conveniente distinguir sexo de género gramatical. O sexo diz respeito a características morfológicas das pessoas e de outros seres vivos. Um género gramatical é um conjunto de palavras que seguem determinadas regras de concordância, distintas das dos outros géneros. Há línguas em que existe em alguns domínios uma relação entre género e sexo, mas não absoluta nem determinante (o caso da nossa), outras em que não há qualquer relação entre género e sexo; outras, raras, em que existe uma relação exacta; muitas em que o género está relacionado com outros factores (animado ou inanimado; metal, madeira ou pedra...), e mesmo algumas em que não existe sequer género.

Em português, muitos dos substantivos que designam um ser animado têm um género que corresponde a uma distinção de sexo (exemplos: o menino, a menina; o gato, a gata), mas muitos outros há em que tal não se verifica, quer no que diz respeito aos animais, quer no que diz respeito às pessoas.

Efectivamente, embora haja nomes de animais que têm masculino e feminino (o coelho, a coelha; o cavalo, a égua…), muitos dos substantivos que designam animais têm apenas uma forma (masculina ou feminina) para os dois sexos. São os substantivos epicenos, de que são exemplo a borboleta, a foca, a girafa, a serpente, o milhafre, o sapo, o tubarão

Passando às palavras que designam pessoas, notamos que muitas delas têm a marca de género correspondente ao sexo, ou por meio do uso de uma palavra diferente consoante o sexo (exemplos: homem, mulher; pai, mãe), ou marcando-se a palavra feminina com um morfema próprio (exemplo: professor, professora). Há, no entanto, um certo número de substantivos, chamados “comuns de dois” e outros “sobrecomuns”, que não têm essas marcas. Os “comuns de dois” são aqueles que têm a mesma forma para o masculino e para o feminino, sendo apenas o artigo que indica se nos estamos a referir a uma pessoa do sexo feminino ou do sexo masculino (exemplos: o artista, a artista; o colega, a colega; o presidente, a presidente). Os “sobrecomuns” são aqueles que têm um só género gramatical, não se distinguindo nem sequer pelo artigo (exemplos: a testemunha, o cônjuge, a vítima), verificando-se apenas pelo contexto, quando necessário, qual o sexo da pessoa. Este último caso acontece porque não importa aqui marcar a distinção de sexo: o que importa é a condição ou a situação da pessoa, e não a diferença de sexo.

De referir, ainda, que, na sua maior parte, as palavras quer de um género quer do outro se referem a objectos ou a seres vivos de qualquer sexo (lagarto, salgueiro...), não havendo nenhum tipo de critério nessa distribuição.

 

Clarificados que estão os conceitos de sexo e de género, passamos à questão da designação genérica masculina presente, por exemplo, nos termos “Cartão de Cidadão”, “Ordem dos Médicos”, “Sindicato dos Professores” ou “Estatuto de refugiado”.

Será de salientar que a língua portuguesa, diferentemente, por exemplo, da inglesa, é redundante, isto é, tem a marca do masculino, do feminino, do singular ou do plural em várias palavras da frase: por exemplo, nas frases “Esta rapariga é simpática.” e “Este rapaz é simpático.”, existem três marcas do género gramatical (estaeste, raparigarapaz, simpáticasimpático), mas as mesmas frases em inglês apenas têm uma marca distintiva, dada pelo substantivo (“This girl is kind.” – “This boy is kind.”).

Ora, tendo a nossa língua essa particularidade da redundância, sempre que possível ou necessário é usado o genérico masculino, singular ou plural, que designa as pessoas em geral, sem se estar a fazer distinção de sexos, precisamente quando não se pretende realçar ou assinalar a diferença de sexo.

Por convenção (marca geral das línguas), é inerente ao português (também pela chamada “lei do menor esforço”) que este genérico género masculino gramatical englobe as pessoas de ambos os sexos quando não há a intenção de as separar, de as distinguir, mas, sim, de as unir, de as considerar no mesmo plano.

E o sexo feminino tem a particularidade, de, querendo-se, ter um estatuto próprio na língua: quando dizemos “Caros alunos”, estamos a referir-nos a homens e a mulheres, mas quando dizemos “Caras alunas”, só estamos a referir-nos a mulheres.

Na nossa língua, no que diz respeito ao género, são os homens que não têm identidade própria, e não as mulheres. Efectivamente, para se conferir aos homens um estatuto próprio, é necessária a referência distintiva a homens e a mulheres. Por exemplo, se dissermos “Os passageiros entraram no avião.”, estão englobados nesta frase os homens e as mulheres, mas, se quisermos dizer que foram só os homens que entraram, então, temos de referir especificamente as mulheres, temos de os separar delas (“Os passageiros entraram, mas as passageiras não o fizeram.”), não se verificando o contrário: com a frase “As passageiras entraram no avião.”, não é necessária a referência aos homens (eles não entraram).

O motivo para isto é histórico: no contexto das línguas indo-europeias a que o português pertence, o género a que chamamos hoje masculino era inicialmente de cariz ambivalente, englobando todas as palavras que se referissem a seres animados, independentemente do sexo. Foi posteriormente que muitas das palavras que se referem especificamente a seres de sexo feminino, bem como várias outras, foram incluídas no género a que hoje chamamos, por esse motivo, feminino, mas sem que isso retirasse ao outro género a sua capacidade ambivalente.

É, naturalmente, admissível que se faça a distinção entre homens e mulheres, por exemplo, num discurso político, por uma questão de expressividade oratória (“Portuguesas e portugueses”, “Cidadãs e cidadãos”…), mas tal não é funcional na generalidade dos discursos e textos.

As palavras não têm sexo: na língua, o masculino ou o feminino são, apenas, género gramatical.

Em conclusão, talvez não tenha sido muito feliz a criação do termo “igualdade de género”, pois as pessoas não são palavras, sendo mais adequada a expressão “igualdade de direitos, deveres e garantias entre sexos”, e, quanto ao “Cartão de Cidadão”, esta designação naturalmente que engloba todo e qualquer cidadão, irmanando homens e mulheres. Poder-se-á é dizer que esta designação essencialmente política é menos clara do que a de “Bilhete de Identidade”, pois é a identidade da pessoa que ali está traduzida, e não os seus direitos ou deveres como cidadão… Mas isso é outra ordem de ideias, fora do âmbito deste texto.

Enfim, será caso para dizer: à política o que é da política; à gramática o que é da gramática!

Professora da Escola Secundária José Falcão, de Coimbra, com formação em Filologia Românica

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