Nem roupas, nem cosméticos, nem alimentos de origem animal

Elsa Pinto e Miguel Costa partilham um apartamento com três gatos no Porto e assumem-se como vegan por razões éticas e ambientais. Última de uma série de cinco reportagens sobre famílias com estilos de vida mais sustentáveis.

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Manuel Roberto
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Bola à transmontana, bola de Berlim, pastéis de nata. Elsa Pinto parece capaz de fazer qualquer petisco português sem produtos de origem animal. Altera temperos, adiciona proteína vegetal. “As pessoas podem ter o mesmo prazer sem sacrificar qualquer animal.” Não foi a única mudança na sua vida e na vida do seu companheiro, Miguel Costa. Não usam roupas feitas de tecidos de origem animal, nem cosméticos testados em animais e já compraram um carro eléctrico. 

Há 15 anos, quando Elsa começou a reduzir o consumo de produtos de origem animal, a vida social de um vegetariano não era fácil (muito menos a de um vegano). Quase não havia restaurantes vegetarianos em Portugal. Um vegetariano entrava num restaurante, pedia que lhe servissem alguma coisa em conformidade e o mais comum era trazerem-lhe um prato com alface, cebola e tomate. Isto num país onde existe uma variada produção de alimentos de origem vegetal e uma tradição gastronómica que valoriza a presença de vegetais, incluindo sopa.

Com o passar dos anos, tem vindo a aumentar o número de vegetarianos e de não vegetarianos com interesse em refeições vegetarianas. E o país ajustou-se a esse número indeterminado de pessoas que optam por manter carne e peixe fora do prato. Já há mais de 30 restaurantes vegetarianos em Lisboa e mais de 20 no Porto e não faltam opções vegetarianas em muitos outros. Uma petição assinada por mais de 15 mil pessoas chegou ao Parlamento e já neste ano foi aprovada uma lei que prevê que todos os menus de cantinas e refeitórios do Estado (caso de escolas, universidades, hospitais, quartéis, estabelecimentos prisionais, lares, autarquias) tenham uma opção que não contenha quaisquer produtos de origem animal.

Elsa está a preparar-se para deixar o trabalho – é formadora na área da informática – e dedicar-se a tempo inteiro a um projecto de petiscos vegan. O Capuchinho Verde já tem um extenso cardápio (filetes de tremoço, muffins de maracujá, empadas de cogumelos e espargos, quiche, seitan assado com batatas, vários tipos de pizza, seitanas, tartes de oreo, coquinhos, barquinhos…), que é feito por encomenda. Elsa participa em mercadinhos, em eventos especiais e, em Setembro, deverá começar a procurar o sítio ideal para instalar uma cozinha com um balcão.

Não anda a evangelizar por aí. Nem ela, nem Miguel, que é engenheiro de sistemas na Universidade do Porto. “Gostamos de explicar o que é, o que implica, mas só quando alguém faz uma pergunta, quando mostra curiosidade”, diz ele. “Acho que não é impondo que se convence as pessoas. Não é dizendo: ‘O que tens no prato é parte de uma vaquinha que foi morta. Imagina a carinha dela.’ É de outra forma. É mostrando que a comida vegan é boa.” E foi, precisamente, dentro dessa lógica que brotou o Capuchinho Verde.

Repulsa pela carne

Há em Elsa e em Miguel uma velha repulsa pelas carnes vermelhas. Nem em pequenos apreciavam o clássico bife com batatas fritas. Nem a mãe de Elsa, nem a mãe de Miguel se encheram de espanto quando eles, ainda antes de se conhecerem, anunciaram, primeiro, que nunca mais comeriam vaca, porco, cabrito, cordeiro, pato ou ganso, depois, que nunca mais comeriam coelho, frango, peru.

A mudança aconteceu, de uma forma gradual, ao longo de anos. Ela tinha 21 anos e conta agora 39 e ele tinha 20 anos e conta agora 35. Não só enjeitam as carnes, os peixes e todas as outras criaturas marinhas, mas também gelatinas, cartilagens, lacticínios, ovos e ovas, mel e derivados.

A mãe de Elsa manifestou grande surpresa quando a ouviu dizer que nunca mais comeria peixe. “A sério, não vais comer?” A filha sempre gostara tanto peixe. De todos os tipos de peixe. “O peixe não faz mal”, suspirou. A mãe de Miguel só ficou de boca aberta quando ele lhe disse que jamais voltaria a comer produtos lácteos. Ainda tentou servir-lhe algo com leite. Ele era “viciado em queijo”.

Para resistir, Elsa pôs-se a pensar no modo como os peixes morrem, de forma lenta e dolorosa, quando são capturados. Grande parte dos peixes que se vendem nos supermercados é criada em viveiros. Os barcos de pesca varrem os oceanos, capturando peixes e outras criaturas. Há cada vez mais espécies ameaçadas.

Para resistir, Miguel pôs-se a pensar na indústria leiteira. “O leite, apesar de não parecer, é uma das coisas que mais levam a maltratar animais e é a que se calhar tem mais impacto ambiental”, diz. “Para manter a produção de leite, as vacas são inseminadas à força. Os bezerros são considerados subprodutos.” Com poucos dias, são retirados às vacas e vendidos para carne. “Felizmente, agora há bons queijos de origem vegetal. Quando começamos não havia”, diz Elsa.

Só consomem leguminosas (feijão, lentilha, ervilha, grão-de-bico), sementes, castanhas, amêndoas, nozes, cereais, frutas, legumes, algas, cogumelos. Vão buscar proteína aos feijões, ao grão-de-bico, às lentilhas, às ervilhas, aos tremoços, às favas, aos produtos de soja, ao seitan, ao tofu, à quinoa, aos amendoins, ao caju, aos pistachos, às sementes de abóbora.

A Direcção-Geral de Saúde (DGS) já fez um manual para quem quer seguir uma dieta vegetariana de forma saudável. A ideia é evitar erros que possam pôr a saúde de cada um em risco. E realçar a relevância do consumo de produtos de origem vegetal na prevenção de doenças. A dieta vegetariana em geral, avisa, exige conhecimentos específicos. A vegana, em particular, “necessita de uma escolha de alimentos muito criteriosa”. Uma atenção especial deverá ser dada à ingestão de alguns micronutrientes. Há um risco associado à vitamina B12, sem fontes na dieta vegana, que deverá ser obtida através de alimentos enriquecidos ou suplementos. 

Contra os maus tratos aos animais

O ponto de viragem, em casa de Elsa e Miguel, aconteceu com o célebre "Best Speech You Will Ever Hear", de Gary Yourofsky, na Universidade Georgia Tech, nos EUA, no Verão de 2010. “Hoje vamos falar sobre as vítimas esquecidas deste mundo: os animais. E do vício mais antigo e persistente do mundo: a carne”, começou por dizer. “Gostaria de pedir-vos que usassem um pouco da vossa empatia agora. E quando eu digo “empatia”, quero dizer: coloquem-se no lugar dos animais e comecem a ver essa questão do ponto de vista deles”, pediu mais à frente, antes de mostrar um vídeo. “Quero pedir-vos para não se virarem, nem fecharem os olhos durante a exibição do filme. Se vocês comem carnes, queijos, leite e ovos, acredito que, no mínimo, devem ser obrigados a ver a dor e o sofrimento que provocam.” Tudo aquilo fez sentido para o casal. Porquê adoptar uns animais e comer outros ou, pelo menos, compactuar com a exploração de outros?

O casal já participou em inúmeras manifestações contra touradas e outros “espectáculos” que implicam algum modo de mau trato animal. Elsa até fez voluntariado na MIDAS – Movimento Internacional em Defesa dos Animais. Partilham o apartamento de tipologia um, no rés-do-chão de um prédio do Porto, com três felinos, não vegetarianos, de personalidade bem vincada.

Os gatos andam pela casa como se fossem donos dela. Mumu, de 13 anos, foi encontrado ainda bebé na margem do rio Tâmega, em Amarante. Gaspar, de 10 anos, mudou-se para esta casa há dois anos, na sequência da morte de uma amiga do casal. E Bimbi, de 5 anos, vivia na rua. 

Efeito no ambiente

Tudo lhes parece ligado. A ética, as condições experimentadas pelos animais criados em cativeiro, os mares castigados pela pesca intensiva, o número crescente de espécies ameaçadas de extinção…

O impacte da agricultura no planeta está a crescer de forma substancial muito por causa do aumento da população e do consumo de produtos de origem animal.  A Organização das Nações Unidas já emitiu uma recomendação global de mudança para uma dieta sem carne e sem lacticínios. Uma dieta vegetariana pode fazer cair a pique a pegada ecológica de cada um. 

De acordo com a Agência para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), produzir cinco litros de leite é como fazer uma viagem de cem quilómetros de automóvel no que à libertação de gases com efeito de estufa diz respeito. Não é só a libertação de gases. São precisos 13 mil litros de água para produzir um quilo de carne de vaca e 4,3 mil para produzir um quilo de carne de frango, mas apenas 1,2 mil litros para produzir um quilo de lentilhas.

Miguel pode fazer discursos inteiros sobre isso. “O processo todo de criar alimentos de origem animal é insustentável”, começa. A pecuária é uma das principais causas do aquecimento global, da degradação do solo, da poluição, da redução da biodiversidade. Ocorre-lhe o exemplo da soja. “As pessoas dizem-me: ah mas a soja dizima a floresta. Pois, mas mais de 90% da soja serve de alimento para o gado.”

“O pessoal omnívoro diz que somos extremistas, radicais”, reconhece Elsa. “Eu não nasci vegetariana. Iniciei o processo há 15 anos e fui reduzindo o consumo de produtos de origem animal, de forma gradual. Eu respeito as pessoas que são omnívoras, as pessoas que estão a tentar reduzir, mudar com o tempo.”

Uma questão ética

O maior obstáculo à mudança para um estilo de vida vegan é a rede social. “Grande parte da convivência passa-se na mesa, acaba por haver mais convivência com pessoas que partilham os mesmos ideais”, resume Miguel. “Temos um grande grupo de amigos vegetarianos”, acrescenta.

Joana Dumas tem 30 anos, trabalha no secretariado do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores - Tecnologia e Ciência da UP e faz parte desse grupo restrito. Conheceram-se nas manifestações contra as touradas. O grupo de amigos mais próximos dela também é todo vegetariano. Acabam por se cruzar quase todos nas manifestações pelos direitos dos animais, nos restaurantes vegetarianos, nos eventos do partido PAN (Pessoas Animais Natureza), onde Elsa monta a sua banca do Capuchinho Verde.

“Tornei-me vegetariana pela questão ética, pela protecção animal”, conta Joana, que foi percebendo que a indústria animal tem muita influência no ambiente. E isso também começou a pesar na sua decisão de se manter nesse caminho. “Acho que esta é a opção mais justa e mais saudável para todos.”

Não querem sentir-se à parte. “Continuamos a ser convidados para festas de familiares e de outros amigos. Se não levo alguma coisa, o mais provável é não termos nada para comer”, ri-se Elsa. “Às vezes até nos acontece ficar sem comida porque as pessoas gostam tanto que comem a nossa parte, mas eu não me importo porque gosto de mostrar que a cozinha vegetariana pode ser saborosa.”

Os produtos de origem animal podem estar muito bem escondidos nos alimentos processados. “Há tostas, sumos que têm produtos de origem animal”, exemplifica Miguel. Há que inspeccionar os rótulos. “Se há um pacote de batatas fritas, vamos logo ver se tem leite, se tem algum produto de origem animal”, achega Elsa. “E as pessoas às vezes vêm isso como exagerado. ‘Ai, é só um bocadinho.’ Não é uma questão de ser só um bocadinho. Isto é uma filosofia de vida.”

Não vestem nada que seja feito de peles, couro, lã, seda, camurça ou outros materiais de origem animal. Nem se adornam com pérolas, plumas, penas, ossos, pêlos, marfim. Só vestem roupa feita com tecidos de origem vegetal, como o algodão ou o linho, ou sintéticos, como o poliéster, o cetim ou o veludo.

Quando entram na secção de produtos para o corpo ou para a casa, recusam tudo o que tenha origem animal ou tenha sido testado em animais. Seleccionam a dedo produtos com a inscrição “vegan” e um coelho a saltar com duas estrelas, o símbolo oficial de não testado em animais.

A opção reflecte-se também nos transportes. Miguel vai trabalhar de bicicleta. “Quando somos nós dois ou temos de levar coisas, levamos o carro eléctrico. Quando temos de ir ao centro da cidade vamos de metro.” Elsa toma a palavra: “Até há pouco tempo, dava aulas com seis portáteis. Não tinha outro meio que não o carro [a combustão].Quando pudemos, mudamos para o carro eléctrico." E é esta lógica, de cada um ir fazendo o melhor que pode, que lhes parece mais ajustada. 

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