Por que não temos os mesmos direitos que os alemães?

Os alemães alcançam mais sucessos, em boa medida porque agem de modo diferente, melhor do que nós. Este é um exemplo flagrante: a política tem mais qualidade e consistência, porque o sistema de representação parlamentar é melhor.

A 24 de Setembro, a Alemanha vai a votos. Grande momento. A democracia a funcionar verdadeiramente. Os eleitores podem escolher quer, individualmente, o seu deputado, quer o seu partido. Em cada boletim, assinalam o partido da sua preferência e indicam o deputado que querem. Podem escolher o deputado do partido da sua cor – como a maioria, naturalmente, faz – ou outro de que gostem mais. E, no rescaldo desta votação, o Parlamento alemão, o Bundestag, resulta composto de forma rigorosamente proporcional, representando com justiça os cidadãos, o território e as correntes políticas com representatividade.

Fui comparar as eleições de 2009 nos dois países, para aferir do respectivo grau de proporcionalidade parlamentar. A representação proporcional personalizada da Alemanha é mais justa do que a representação proporcional de Hondt de Portugal. A CDU-CSU alemã teve 33,8% dos votos e 38,4% dos deputados, enquanto, em Portugal, o PS obteve 36,6% dos votos e 42,2% dos lugares. Indo aos partidos seguintes, a evidência é mais flagrante (indicando, primeiro, a percentagem de votação, seguida da de assentos). Na Alemanha: SPD - 23,0%/23,5%; FDP - 14,6%/15,0%; Die Linke - 11,9%/12,2%; Verdes - 10,7%/10,9%. Em Portugal: PSD - 29,1%/35,2%; CDS - 10,4%/9,1%, BE - 9,8%/7,0%; e CDU - 7,9%/6,5%.

A verdade é esta. Com ligeira variação, porque nenhuma eleição é igual a outra, a verificação é sempre esta: o sistema alemão é mais proporcional do que o nosso. Cai fragorosamente por terra o argumento habitualmente usado, por desconhecimento ou má fé, de os círculos uninominais em sistema misto beneficiarem os grandes e distorcerem a proporcionalidade. Não é assim. Uma coisa são mitos e fantasias, outra a realidade.

Também cai por terra o mito dos “limianos”, a ideia mais estúpida que se sentou no debate em Portugal. A ideia de os candidatos uninominais serem irresponsáveis populistas ou caciques desqualificados não resiste a um exame breve. Vamos ver alguns “limianos” destas eleições alemãs: na Pomerânia, a Chanceler Angela Merkel, candidata por Vorpommern-Rügen-Vorpommern-Greifswald I; na Renânia do Norte, o líder liberal Christian Lindner, candidato pelo Rheinisch-Bergischer Kreis, ou a cabeça de cartaz do Die Linke, Sahra Wagenknecht, por Düsseldorf II; na Turíngia, a co-líder dos Verdes, Katrin Göring-Eckardt, candidata por Erfurt-Weimar-Weimarer Land II; em Baden-Württemberg, o outro co-líder dos Verdes, Cem Özdemir, candidato por Stuttgart I, a cabeça de cartaz do AfD, Alice Weidel, por Bodensee, e o nosso bem conhecido Wolfgang Schäubel, por Offenburg (Ortenaukreis). A prática de muitos candidatos, com destaque para as maiores figuras, se apresentarem simultaneamente em círculos uninominais e listas plurinominais é comum e frequente. Como é evidente, não são eleitos pelos dois lados. Se, no provimento dos lugares a que cada partido tem proporcionalmente direito, um deputado já conquistou assento uninominal, que tem prioridade, o seu lugar na lista passa para o seguinte. Mas esta prática consolida, por um lado, a coesão e, por outro, a prevalência de uma cultura cidadã na formação do conjunto das candidaturas: só são candidatos aqueles que têm prestígio, trabalho, serviço, reputação, reconhecida capacidade – capital próprio. O exercício de selecção dos uninominais contagia toda a construção das candidaturas, seja através dos que também estão nas listas, seja por aqueles que, estando só nestas, são seleccionados na mesma maré, no mesmo espírito, na mesma cultura de consistência, substância e personalidade. Mandam as bases, mandam os cidadãos.

É também um sistema completamente aberto, com flexibilidade para corresponder à liberdade da cidadania: não é obrigatório os partidos concorrerem em todos os círculos uninominais num dado espaço territorial, nem sequer apresentarem listas completas para todos os lugares teoricamente a eleger; e pode haver candidatos independentes nos círculos uninominais, assim como federarem-se entre si para uma lista estadual (os Freie Wähler).

A realidade mata o argumento da fragmentação. Como desmente o argumento (inverso) da concentração bipartidária. A história eleitoral da Alemanha mostra o contrário. Em 1949, o Bundestag teve 10 partidos ou coligações e ainda deputados independentes. A seguir, a sedimentação partidária e a cláusula-barreira de 5% reduziram, em 1953, para 6 partidos ou coligações e, desde 1961, para os três que têm dominado a política alemã: CDU-CSU, SPD, FDP. A partir de 1983, afirmou-se um quarto partido: os Verdes. E, desde a reunificação, em 1990, têm emergido novos partidos que chegam ao Bundestag: primeiro, o PDS/Die Linke; mais recentemente, o AfD. Ou seja: o sistema alemão tem a plasticidade adequada à evolução da opinião pública e da estrutura política da sociedade. Em Portugal, começámos por quatro partidos históricos, passámos a uma fase de dois partidos dominantes e estamos, hoje, num quadro de “pentapartido” – não é muito diferente. Nós não temos – e bem – a cláusula-barreira de 5%, que surgiu na Alemanha, na ressaca do nazismo, para dificultar a afirmação de minorias extremistas. Mas temos uma barreira matemática implícita: em Portalegre, é preciso 30% para sonhar eleger um deputado; e são variados os círculos em que só com mais de 10%, ou 15% ou 20%. O nosso sistema é capaz de ser pior.

Caem também por terra os argumentos de ingovernabilidade e instabilidade. Só uma vez houve maioria monocolor no Bundestag: a CDU-CSU, em 1957, com Adenauer. No mais, tem havido variadas coligações: CDU-CSU/outros centro-direita, CDU-CSU/FDP (a mais frequente), CDU-CSU/SPD (como hoje), SPD/FDP e SPD/Verdes. O sistema garante estabilidade, assegura governabilidade e gera uma cultura de cooperação e concertação superior à que conhecemos, com a vantagem de que é enraizada na sociedade, dadas as características do sistema eleitoral: as coligações ou se fazem, ou não se fazem; mas, se se fazem, tendem a durar. Só houve três dissoluções do Bundestag em quase 70 anos: 1972, 1983 e 2005 – não conto a eleição antecipada de 1990, que se deveu à reunificação. Em Portugal, houve sete em 40 anos: 1979, 1983, 1985, 1987, 2001, 2005 e 2011.

Os alemães alcançam mais sucessos, em boa medida porque agem de modo diferente, melhor do que nós. Este é um exemplo flagrante: a política tem mais qualidade e consistência, porque o sistema de representação parlamentar é melhor. Por isso, os alemães gostam de votar: até à reunificação (1949/90), a abstenção nunca chegou aos 16%; e, depois, apesar do peso de novos Estados sem tradição democrática, a abstenção nunca ultrapassou os 30%. Nós vamos em 45%.

O mais deplorável é que, em 1997, revimos a Constituição para permitir a introdução deste sistema. Há 20 anos que o egoísmo possessivo de directórios partidários de vistas curtas sabota esta reforma fundamental para a cidadania e a qualidade da democracia.

Olhemos a 24 de Setembro e roamo-nos de inveja saudável. Vamos ver funcionar um sistema decente, sólido, participado, plural, realmente representativo. Façamo-nos esta pergunta: por que podem os alemães escolher livremente os seus deputados e o partido que preferem e nós não? Por que é que temos menos direitos do que eles? Por que é que temos de ser atrasados?

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