Mudanças na social-democracia europeia

Schulz representa quase tudo aquilo que os extremismos em voga deploram: a moderação firme, a convicção não sectária, a inteligência anti-dogmática.Se porventura ganhar as eleições de Setembro próximo observaremos transformações de inequívoca importância.

1.A social-democracia europeia vive momentos ao mesmo tempo curiosos e difíceis. Provavelmente não poderia ser de outra forma. Os extremistas, de direita ou de esquerda, conseguem permanecer relativamente insensíveis às convulsões da realidade. Não lhes é difícil atingir tal estado de quietude: os dogmas anulam qualquer vestígio de inteligência crítica e o sectarismo anula qualquer veleidade de abertura para a compreensão de posições adversas. Para eles as suas próprias doutrinas correspondem a uma inquestionável certeza e tudo o que as contraria não passa de uma desagradável anomalia. Não é de estranhar que exibam uma pretensa superioridade moral e intelectual, seja numa versão reacionária, seja numa versão onde convivem contraditórios impulsos revolucionários e desconstrutivistas. Felizmente não se passa o mesmo no interior da esquerda democrática e liberal europeia.

A história do movimento social-democrata e do socialismo democrático está longe de corresponder a um modelo de linearidade simplista.  Quando Bernstein, no início do século XX, proclamou “o movimento é tudo, o objectivo não é nada”, estava não só a estabelecer uma profunda ruptura com uma certa tradição marxista como também a delinear o arquétipo do gradualismo reformista que caracterizou no essencial a acção histórica prosseguida pelo centro-esquerda europeu. Nessa afirmação estão contidas múltiplas considerações da maior importância: a recusa de uma concepção teleológica e finalista da história, a desvalorização de um cientificismo messiânico, a recusa de um providencialismo absoluto associado a um sujeito histórico concreto. A evolução da social-democracia alemã permitirá a concretização de todas estas inclinações. Talvez não seja despiciendo relembrar o momento em que se materializou a sua conciliação com os princípios da economia de mercado no célebre congresso de Bad Godesberg. Com Willy Brandt, Helmut Schmidt e Gerhard Schröder, os três chanceleres de origem social-democrata, a Alemanha prosseguiu um caminho assaz curioso e inequivocamente singular no contexto europeu. Willy Brandt ao mesmo tempo que promoveu a Ostpolitik, a abertura a um novo relacionamento com a RDA e com toda a Europa de Leste, preconizou a criação de uma moeda única europeia e revelou uma solidariedade sem falhas com todo o espaço político ocidental. Schmidt teve também um papel decisivo na consolidação do projecto europeu, apostando fortemente no reforço do eixo franco-alemão numa altura em que a França era presidida pelo conservador-liberal Giscard d’Estaing. Schröder, que fundamentou a sua acção política na teoria do chamado “novo centro”, teve um papel absolutamente decisivo na reafirmação da Alemanha como uma potência económica e exportadora de primeiro plano a nível mundial.

Este breve excurso histórico, em que deliberadamente deixei de lado qualquer referência à República de Weimar, serve para testemunhar o carácter complexo do movimento social-democrata exemplificado na actuação do partido mais importante a que deu azo em toda a Europa. Voltemos ao tempo presente.

Enquanto os trabalhistas britânicos se comprazem com a liderança de um homem, Jeremy Corbyn, que os condena praticamente ao estatuto de um partido menor e tribunício, e tendo os socialistas franceses escolhido para candidato presidencial alguém que poderá ter méritos significativos enquanto animador de uma reflexão socio-económica sobre alguns temas do futuro mas que notoriamente não apresenta propostas credíveis para enfrentar os problemas presentes da sociedade francesa, os alemães acabam de fazer uma opção de natureza bem distinta. Martin Schulz insere-se no melhor da grande tradição da social-democracia alemã, a que associa uma profunda paixão pelo projecto político europeu. Trata-se de um homem culto, que ao longo dos vários anos em que desenvolveu intensa actividade política no Parlamento Europeu deu provas de possuir simultaneamente uma grande consistência doutrinária e um elevado sentido do compromisso político. Não será por acaso que os alemães estão a reagir tão bem à sua candidatura à liderança do governo germânico. Schulz representa quase tudo aquilo que os extremismos em voga deploram: a moderação firme, a convicção não sectária, a inteligência anti-dogmática. Se porventura ganhar as eleições de Setembro próximo e se tornar no próximo chanceler alemão muitas coisas poderão mudar na Europa de forma séria e consistente. Não assistiremos a nenhuma revolução, o que certamente desiludirá os espíritos simples e as boas almas que por aí pululam, mas observaremos transformações de inequívoca importância. 

É com homens de esquerda sólidos como Schulz e não com fantasistas e vendedores de ilusões como Hamon ou Corbyn que se poderá e deverá promover o relançamento da social-democracia europeia. Nessa perspectiva, não deixa de ser um acaso feliz que o mais interessante líder nacional desta família política surja no país momentaneamente mais pujante da União Europeia, a Alemanha. Isso permite-nos projectar expectativas ainda maiores na sua capacidade de influenciar os destinos do Continente e da família política em que se integra. 

2. Como cidadão profundamente ligado à cidade do Porto, e apesar das diferenças ideológicas e políticas que são por demais conhecidas, não posso deixar de saudar a escolha feita pelo Partido Comunista Português para as candidaturas às presidências da Câmara e da Assembleia Municipal da Cidade. Ilda Figueiredo e Rui Sá, com os quais tive o privilégio de conviver em momentos distintos, são duas personalidades de primeiro plano que têm em comum um profundo conhecimento da realidade portuense. Ao escolhê-los, o PCP demonstra respeito pela Cidade do Porto e dá um forte contributo para a qualificação do debate autárquico. Estou aliás convencido de que têm todas as condições para a obtenção de um excelente resultado, com o que, do meu ponto de vista, em muito poderão beneficiar os cidadãos do Porto. Para quem ache estranha esta minha posição convirá lembrar que fui dos primeiros militantes socialistas a defender a vantagem da realização de coligações pré-eleitorais entre os partidos de esquerda em várias localidades do país. Uma coisa é o âmbito municipal, no qual, estou certo, facilmente estes partidos se entenderiam; outra é o âmbito nacional em que as divergências programáticas ainda são muito profundas. De qualquer modo, desejo uma boa campanha e bons resultados a estes dois candidatos comunistas à autarquia do Porto.

 

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