Dominar (e não apenas diagnosticar) as desigualdades

Os bons sentimentos, mais ou menos partilhados, têm o seu lugar próprio, que não é o da decisão para o interesse colectivo. A “política do amor”, a “piedade política”, no limite, é sempre uma fraude política.

Nos anos 90 do século passado, o que parece ser já – e será – um outro tempo, Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon escreviam que se tornava necessário dominar as novas desigualdades e não apenas compreendê-las ou diagnosticá-las, sob pena de as sociedades europeias se bastarem no seu auto-contentamento nascido das vitórias sobre as desigualdades “históricas” e esquecerem o quotidiano real de milhões de pessoas. Esse é ainda hoje provavelmente o maior desafio da esquerda democrática, a única que sente esse dever de redução das desigualdades de forma pesada, responsável e consequente.

Há milhões que vivem essa agenda diária de desigualdades novas, que os jornais noticiam de forma circunstancial e tópica, sem nos apercebermos da sua consistência e regularidade, e que vão aos poucos deteriorando a confiança nos mecanismos de responsabilidade e intervenção social do Estado e no discurso contemporâneo sobre direitos.

O que é ter de usar cunhas e compadrios para encontrar uma vaga para um filho numa escola pública da sua residência, cúmulo da negação dos valores republicanos? Como se podem ter territórios em que abunda a contratação com privados do fornecimento de uma suposta educação pública, sem justificação que não seja a conveniência financeira de alguns?

Ou como se pode assistir, em contexto autárquico, ao degladiar de vantagens de base meramente territorial, desde logo fiscais, que parecem sempre boas até se discutir a sua excepcionalidade e o seu custo relativo e perante justificações muitas vezes frágeis precisamente de redução das desigualdades? Ou como se explica que o acesso a cuidados de saúde seja tão diferenciado na sua prontidão, qualidade e disponibilidade, consoante a região? Ou como conviver com cidades e zonas que se prontificam a tudo oferecer ao visitante ocasional e que parecem esquecer o seu habitante de sempre, aquele que ali vive, paga impostos e oferece o seu trabalho? Ou o que é ter lado a lado trabalhadores com um regime laboral de acordo com a lei e a decência e novos trabalhadores disfarçados de colaboradores eventuais, precarizados não só no seu salário mas na sua dignidade e na sua esperança?

Entre nós, qualquer discurso político sobre a coesão e a interioridade, esse conceito urbano num país com 150 quilómetros entre fronteiras, com as melhores infra-estruturas viárias do mundo e com uma fronteira interior à beira de um mercado imenso de fornecedores e clientes, deveria aliás assentar mais nesta linha de combate real às novas desigualdades, as que efectivamente condicionam as decisões e a liberdade das pessoas, e menos num choradinho sobre um passado glorioso de aldeias pitorescas então cheias de gente e de crianças risonhas – e também de fome, de analfabetismo e de acesso a uma espécie de saúde por caridade e circunstância – que infelizmente ainda faz o seu caminho.

Retomando as palavras daqueles autores, em tempo de tragédias sucessivas e aproximando-se eleições, pode também valer a pena recordar a vantagem da distinção que deve sempre ser feita entre política e bons sentimentos. Alimentar a ideia de que o papel do decisor político, seja ele autarca, seja ministro, seja presidente, se alicerça no modelo do chefe sempre disponível que vai dar um abraço amigo em tempo de drama pessoal, num “consenso dos bons sentimentos”, é do pior que podemos fazer à nossa política.

Os bons sentimentos, mais ou menos partilhados, têm o seu lugar próprio, que não é o da decisão para o interesse colectivo. A “política do amor”, a “piedade política”, no limite, é sempre uma fraude política. Como diziam afinal os clássicos, a política dispensa as paixões. A política é escolha e decisão, perante alternativas. O consenso da emoção, parecendo alargar a nossa humanidade, apenas nos dilui as opções políticas de escolha e de futuro.

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