As eleições falcão

Quando era miúdo, todos os sábados depois do almoço, ia alugar um filme ao Clube de Vídeo da minha rua. (Peço desde já desculpa ao leitor por iniciar a crónica com referências anacrónicas. Quer ao leitor mais jovem, que não conhece a tecnologia ultrapassada das cassetes de vídeo, quer ao leitor mais engajado, que acha que, em 2014, resultado das políticas deste Governo, a ideia de que as crianças conseguem almoçar é obsoleta.)
— Boa tarde, Sr. Moreira, queria alugar o Roliças e Marotas, se faz favor.
— Já fizeste 18 anos? Ou continuas a ter 11, como na semana passada?
— Continuo com 11.
— Então escolhe outro filme.
— Pode ser a Mulher-Falcão.

É que nesse filme havia uma cena em que a Michelle Pfeiffer pontificava quase em pelota. E a história também não era totalmente má. Um par de amantes medievais fora amaldiçoado pelo bispo lá da terra. De dia, a mulher era um falcão e acompanhava o seu amado. Quando o sol se punha, enquanto o falcão voltava à forma humana (numa dessas metamorfoses é que se vislumbrava um pedaço extra da Michelle Pfeiffer), era a vez de o homem se transformar em lobo. De maneira que os amantes nunca se chegavam a encontrar. O máximo que acontecia era o lobo ficar a olhar para o falcão. Era uma mistura de National Geographic com Romeu e Julieta.

É, também, um bocado a situação política actual. Segundo todas as declarações ouvidas durante o 25 de Abril, habita em Portugal um povo que está farto deste regime, pois o regime não “cumpre Abril”. (Parece que também não “executa Fevereiro”, nem “completa Outubro”. Mas, de todas as acções sobre meses do ano que não são concluídas pelo regime, a parte de “cumprir Abril” é a mais grave.) Ora, esse povo que quer substituir o regime por outro nunca o consegue fazer nas eleições. Desde 1974, já houve 13 legislativas e, como a Mulher-Falcão que não se cruza com o seu amado, o povo que quer derrubar o regime não se consegue coordenar para coincidir com as eleições, perdendo a oportunidade de eleger partidos que apliquem as mudanças desejadas.

O que é esquisito, porque este povo é imenso. Está na rua, nos jornais, nas televisões, nos blogues, enfim, em todo o lado. É preciso ter falta de sorte, para nunca conseguir ir votar. Nas eleições de 1976, com a hipótese de abortar a democracia-zigoto, o povo preferiu ir para a praia. Em 79, estava a dar um episódio emocionante da novela, de maneira que o povo também não foi votar. Em 80, foi uma colectiva ida de urgência ao dentista que impediu o povo de eleger os partidos que iam fazer disto um país como deve ser. Em 83, a mesma coisa. Em 85, 87, 91 e 95, idem. Finalmente, em 99, o povo dirigiu-se em fúria às assembleias de voto! Sucede que, entretanto, tinha aberto uma churrasqueira nova que valia mesmo a pena visitar. As eleições eram cruciais, mas a churrasqueira tinha um estupendo buffet de sobremesas, de modo que teve de ficar para outra oportunidade. Que não foi em 2002, porque jogava a selecção. Nem em 2005, que chovia imenso. Nem em 2009, que chovia pouquíssimo. Nem em 2011, em que o povo chegou atrasado três minutos e as urnas já tinham fechado.

E em 2015, o que é que irá impedir este povo bom, justo e politicamente esclarecido de eleger os partidos que farão cumprir Abril? Impossível adivinhar. A mim, a única coisa que me poderá afastar das urnas é a hipótese de finalmente ver as Roliças e Marotas.     

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