Tomba-gigantes

1. Ao fundo da sala desce um ecrã, as equipas entram em campo lá no Brasil, o hino nacional brada no campo e na sala, patriotas de vermelho-selecção, punho no peito, nobre povo. Estamos em Lisboa, a 90 minutos de poemas vão suceder 90 minutos do futuro de Portugal, e há quem fique de uma sessão para outra, como teriam ficado Ruy Belo, Assis Pacheco & etc de poetas. É a chama imensa ou o poema contínuo, mas eu saio antes que acabe o hino. A sala foi ficando densa de fumo, amigos foram em busca de ar, e eu vou, com outros, reunir-me a eles. 

2. Caminhamos de Santos ao Cais do Sodré, comentando como a sala enchera para ouvir poemas, ficara até difícil passar entre as mesas, tanta gente de pé, quantas pessoas ao todo, 70? Nisto entramos no novo Mercado da Ribeira e 700 pessoas estão sentadas no chão, esfuziantes porque Portugal acaba de marcar um golo. 

3. Novo Mercado da Ribeira: não sei se o futuro de Portugal é o futebol mas o presente é gourmet. Por exemplo, os amigos brasileiros que nos esperavam tinham chegado há uns três dias e aquela era a terceira vez que comiam ali. Eu não estava a par do acontecimento, todas aquelas bancas de chefs. Os chefs são os novos profetas, conciliam em vez de dividir multidões no espaço e não no tempo, porque a vida do estômago é instantânea e mortal, ao contrário da vida da cabeça. A Time Out é que fez o novo Mercado da Ribeira, explicou-me uma amiga portuguesa. O futuro da imprensa já é gourmet. 

4. Já multidão e poesia são compatíveis mas assíncronas. Nos raros casos em que a multidão vem, o poeta foi. O que define um poeta de multidões não é ser mau, é estar morto. A multidão de um poeta acontece no tempo, por acúmulo de um mais um mais um, entregues à própria cabeça. 

5. A propósito, entre a sessão de poemas e o jogo de Portugal, um velho leitor de Herberto falara-me do novo livro de Herberto, e de manhã, horas antes dos poemas, outro velho leitor de Herberto, na outra ponta de Lisboa, falara-me do horror à idolatria. Comprei o novo livro de Herberto na manhã em que saiu, trouxe-o do Porto para o Alentejo para dentro da lareira que já não é lareira, mas ainda não o tirei do celofane. Estou à espera que assente a poeira da corrida, ou como lhe chamar. 

6. Há na idolatria uma pulsão sacrificial que é vitória da morte. O contrário será a insubordinação, pulsão de vida. Sophia de Mello Breyner Andresen tem aquele verso, Não servirei senhor que possa morrer. O meu horror à idolatria é o horror à subserviência, aos venerados em altar da literatura: não servirei senhor que me possa matar. Idólatras são tudo o que um aumentador de cabeças como Herberto não precisa, potência insubordinada ao tempo, e ao seu derradeiro julgamento.

7. Entre os poetas da sessão pré-jogo, não havia veneráveis. Naquele arco que vai dos gregos a Adília Lopes seriam quase todos pós-Adília. Falta de solenidade não é falta de ritual, nem de sagrado, como sabe quem tenha vivido a sério um Carnaval. É só uma espécie de desassombro, de riso na cara do rei que vai nu. E enquanto os poetas rirem na cara do rei que vai nu ainda cá estamos, glóbulos brancos, glóbulos vermelhos, luta de titãs com a morte. 

8. Raul Mourão, artista brasileiro que mencionei na semana passada, tem esta frase numa peça: Poesia come tudo. Índios disseram isso de outra maneira, Oswald de Andrade disse isso de outra maneira, o Brasil diz isso ao mundo embora ouça várias outras coisas em outras direcções. O que o Brasil diz não coincide com o que o Brasil ouve. Pois sim, poesia come tudo, de agriões a rilke shakes (para aludir a uma poeta “parente” de Adília Lopes, a brasileira Angélica Freitas que hoje deve ter acordado no Porto, se virem uma gaúcha de óculos vermelhos, é ela). Mas onde eu queria chegar era a isto, se a poesia come tudo é o tomba-gigantes da morte.

9. Foi na madrugada desse domingo dos poemas e do jogo de Portugal que morreu o Miguel Gaspar. Não trabalhei de perto com ele enquanto editor do Mundo, e na fase em que integrou a direcção do PÚBLICO estivemos em pólos diferentes. A imagem que guardo é bem anterior, a do compincha do jornal rival, quando passámos dias a cobrir a Bienal do Rio de Janeiro, ele para o Diário de Notícias, eu para o PÚBLICO, ele sempre mais rápido, eu sempre atrasando o fecho, escrevendo textos lado a lado e divertindo-nos o resto do tempo. Passaram exactamente 15 anos até à última vez que o Miguel me escreveu no Facebook, já eu estava aqui no Alentejo, uma mensagem compincha como um arco no tempo, por cima de toda a usura. Ele disse que estava feliz e eu sorri.

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