Quem me diz para sair da minha zona de conforto devia sair da minha zona de conforto

Ainda usa chucha? Que vergonha!” É uma coisa que as pessoas dizem à minha filha. É curioso, porque muitas vezes são adultos fumadores a repreenderem uma criança de três anos cujo hábito não provoca cancros em terceiros. Pelo menos, a comunidade científica ainda não revelou casos de cancro dos pulmões causado por borracha roída em segunda mão. Portanto, apesar de ainda não saber a definição de “zona” nem de “conforto”, a minha filha já é aconselhada a sair da sua zona de conforto. 

Deve ser fácil descobrir quem foi a primeira pessoa a dizer a outra para sair da sua zona de conforto. É um fenómeno claramente definido no espaço e no tempo. Só pode ter aparecido no Ocidente, nos últimos 30 anos. Não estou a ver dois nigerianos a terem esta conversa:
— Babangida, vou buscar água ao poço de Ntungalungo.
— Buscar água a 43 km? Só? Devias sair da tua zona de conforto, N’Kono!
Ou um camponês alentejano da Idade Média a dizer:
— Estou insatisfeito com o meu desenvolvimento pessoal enquanto servo da gleba. Na próxima avaliação de desempenho com o meu senhor feudal, vou pedir transferência para o departamento de estrume. Talvez ele permita que eu saia da minha zona de conforto se lhe oferecer a virgindade da minha filha.

Foi preciso o conforto tornar-se ubíquo e abundante para se lhe poder torcer o nariz. Agora, todos os dias somos aconselhados a abandonar a nossa zona de conforto. Criou-se uma tal obrigatoriedade de sair da zona de conforto que quem permanece confortável sente que está a transgredir. Há uma pressão social intensa e as pessoas angustiam-se por estarem a violar uma norma universal. Se toda a gente que conhecem sai da respectiva zona de conforto, quem se deixa ficar sofre a agonia da exclusão. E, quando dá por isso, sente-se desconfortável em plena zona de conforto. Ou seja, neste momento, quem sai da zona de conforto acaba por se sentir confortável com isso. Quem deseja realmente sair da sua zona de conforto deixa-se permanecer desconfortável na sua zona de conforto.

Por mim, estou decidido a sair da minha zona de conforto. Só que não o queria fazer logo de uma vez, à maluca. Preferia ir tentando aos bocados. Em vez de uma saída completa, um pôr a cabecinha de fora da zona de conforto, só para espreitar e ver como é que se está lá fora. Quero tornar a minha saída da zona de conforto o mais confortável possível.

Depois disso, julgo que tenho condições para continuar com a tendência de aceitar conselhos de práticas incómodas. Depois de “Sai da tua zona de conforto”, tenciono seguir: “Come má comida”; “Engata miúdas feias”; “Vê comédia que não faz rir”; “Caminha com sapatos apertados”; “Lê livros desinteressantes” e “Viaja para sítios monótonos”. Numa fase posterior, para aumentar o constrangimento, acatarei vários reptos em conjunto. Por exemplo, levar uma rapariga feia a passear a um sítio monótono, para onde caminharei de sapatos apertados, impressionando-a com um livro desinteressante que ando a ler.

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