Conselhos a um voyeur munido de telemóvel

As reportagens sobre a destruição causada pelo mar são impressionantes. Não consigo ficar indiferente às imagens de ondas descomunais a entrar em estabelecimentos de diversão nocturnos ribeirinhos e a dar novo significado à expressão “bar aberto”. Choca-me que, num país ocidental, seja possível haver uma massa de água que leva tudo à frente sem que haja alguém no terreno a ajudar o popular que filmou a cena com o seu telemóvel sem o mínimo de qualidade artística. Voltámos à barbárie?

É um sinal do nosso atraso, a pouca cultura de voyeurismo de catástrofes. Não faz sentido, quando já existem telefones com câmara há tantos anos, que se continue a filmar em 2014 como se estivéssemos em 2008. A Protecção Civil devia defender-nos era destes maus vídeos. Criar um alerta amarelo para quando forem a passar na televisão: “Aviso: este vídeo pode chocar devido à péssima qualidade.” Vê-los já enjoa. Não só metafórica, mas também literalmente: são já várias as vezes em que tenho de mudar de canal, para não ficar mareado com os solavancos. Deixo, por isso, algumas recomendações aos cineastas de ocasião, para estarem à altura dos cataclismos e não destruírem as estupendas imagens de destruição que se podem ver por aí.

Transeunte que filma um desastre natural, esteja com a câmara quieta, se faz favor! Meneie a sua cabeça à vontade, mas não acompanhe com o telefone. Não o sacuda de um lado para o outro em movimentos bruscos e aleatórios, que fazem com que quem está a ver as imagens fique agoniado. Se o objectivo é não vomitar, eu prefiro estar dentro do mar revolto do que a vê-lo na televisão filmado dessa maneira.

Afaste-se o suficiente para enquadrar a cena toda e deixe-se estar sossegado, pá! Filmar uma enxurrada com um plano apertado a abanar é a mesma coisa que a minha filha levar a câmara para a banheira quando toma banhos de espuma. Um carro a ser arrastado não se distingue de um nenuco a que ela costuma lavar a cabeça.

Outra. Não fale durante a filmagem. Vamos supor que uma onda galga um pontão e arrasta um ecoponto. Não vale a pena dizer: “Iiiiii! Olha como aquela onda galgou o pontão e arrasta o ecoponto!” Em princípio, se filmou como deve ser, o espectador sabe. Também não invente piadas, tipo: “E agora? O plástico está misturado com o cartão e com o lixo orgânico. Vai ser preciso chamar o Gervásio para separar outra vez.” O público em casa pode não ter a referência do Gervásio, o simpático chimpanzé do anúncio, que aprendeu a separar os resíduos num instante.

Além de que, como os microfones são fracos, se o realizador está a falar por cima, deixa de se ouvir o som ambiente, que contribui para conferir espectacularidade ao desastre. Os comentários inúteis de quem filma abafam o troar da chapa de um carro a ser amarfanhada contra um semáforo, ou o estrondo de uma árvore a tombar em cima de uma paragem de autocarro, o que acaba por ser desagradável. O pior é quando deixamos de perceber se a voz é de quem filma ou de uma vítima histérica. Há que evitar essas confusões.

No fundo, a melhor forma de filmar uma calamidade resume-se a imitar as boas práticas da indústria pornográfica: em primeiro lugar, se a imagem abana, não é pela câmara; depois, por mais vistosa que a acção seja, há que manter o profissionalismo e não comentar.

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