Uma Comissão Vitivinícola Regional (CVR) não se mete na vida das empresas. Num mercado auto-regulado, garante a genuinidade dos vinhos da sua região através de mecanismos de certificação, fiscaliza as contas correntes e promove os vinhos a nível nacional e internacional. Sucede que certas CVR não se limitam a cumprir os estatutos. São, por assim dizer, mais irrequietas. A CVR do Tejo é uma delas.
Dos 13 mil hectares da região, 4500 estão plantados com Fernão Pires, que é a casta branca mais abundante em Portugal, muito presente nas regiões do Tejo, de Lisboa, da Península de Setúbal e da Bairrada (aqui com o nome de Maria Gomes). Casta generosa para o produtor, acabava por não ter grande dignidade enquanto marca ou vinho varietal. De resto, nenhum consumidor entrava num restaurante com a ideia de pedir um Fernão Pires do Tejo para acompanhar o almoço, assim como quem pede um Alvarinho ou um Arinto.
Em Março de 2018, a equipa da CVR dirigida por Luís de Castro promoveu uma prova com varietais de Fernão Pires. Vinhos novos, menos novos, velhos ou bem velhos, em modo tranquilo, colheita tardia, espumante, abafado ou aguardente. E, com uma singela prova comentada por João Silvestre (CVR), Martta Simões (Quinta da Alorna) e Diogo Campilho (ex-Lagoalva), iniciou-se uma espécie de revolução com a casta Fernão Pires no Tejo, coisa que é comprovada pela matemática e não pelas nossas opiniões: dos actuais 59 vinhos varietais de Fernão Pires da região do Tejo, 30 destes nasceram a partir da colheita de 2020. Ou seja, estamos perante um caso em que a ideia de uma CVR — que não mete o bedelho na vida das empresas, repetimos — pode mudar uma região. Nas escolas de gestão deve haver um conceito em inglês para casos destes.
E o mais curioso neste processo com meia dúzia de anos é que os enólogos e os produtores dos diferentes terroirs do Tejo (Campo, Charneca e Bairro) souberam pegar na casta e brincar com a sua plasticidade. Já no início dos anos 1990 tínhamos provado vinhos de Fernão Pires bem velhinhos com a orientação de Virgílio Loureiro — sempre atento a estas matérias —, mas, naquela altura, não nos ocorria que fosse possível produzir tanta diversidade com uma casta que quase só dava vinhos de combate (a ignorância é arrogante, pois). Hoje, já perdemos a conta ao número de provas de Fernão Pires promovidas pela CVR do Tejo em que a casta brilha consoante a interpretação de cada enólogo e de cada casa.
Um Fernão Pires de uma vinha com 70 anos do Casal Branco (sempre sério) nada tem a ver com o perfil mais internacional do Fernão Pires da Casa Cadaval, com o inusitado Gutta Supera, ou com o Fernão Pirão da Quinta da Lapa, que pretende recuperar a história. Um Encostas do Sobral é mineral e seco, muito diferente do ACA (Cooperativa de Almeirim), que na última edição tem menos trabalho de barrica, sendo que a Companhia das Lezírias, o Casal Branco e a Cooperativa do Cartaxo têm brancos de guarda de grande nível (quem nos dera ter umas caixas de Fernão Pires da Cooperativa do Cartaxo das colheitas de 2007 e, pasme-se, de 1999, só para chatear certos amigos preconceituosos que cá conhecemos). E, claro, convém nunca esquecermos o Falcoaria na variante de colheita tardia — que muitos fãs colocam num top três a nível nacional — ou a sublime aguardente vínica 20 anos da Quinta da Atela.
O que é um vinho Campo do Tejo?
Agora segue-se a marca Campo do Tejo, que é uma nova categoria /cluster de vinhos brancos de Fernão Pires idealizada pela CVR e consiste na apresentação de brancos da colheita mais recente, maioritariamente criados no terroir do Campo. E que diferença existirá entre esta nova categoria e as marcas que já exploram em modo varietal a casta em causa? Estes brancos Campo do Tejo são mais leves (limite de álcool em 12%), sem madeira e destinam-se a um consumo imediato, descomprometido no dia-a-dia (a esplanada é cara deles) e a um preço de venda ao público em conta (entre 4 e 5,5 euros, anuncia a CVR). Não serão, evidentemente, vinhos de guarda.
Claro que, quando todo o sector quer aumentar os preços médios dos vinhos, por que razão uma CVR promove uma categoria com valores baixos? A pergunta tem duas respostas: primeira, como o Tejo é uma região com níveis de produção por hectare elevadíssimos e, em consequência, fornecedora de vinho para outras regiões com mais fama, a categoria Campo de Tejo é uma estratégia para valorizar as uvas da região na própria região e, assim, garantir mais riqueza territorial (exercício inteligente); segunda, para aqueles mercados externos que começam a interessar-se pelo vinho, mas que não têm por hábito pagar muito por uma garrafa, a categoria Campo do Tejo será competitiva.
O layout das garrafas (bastante leves) é uniforme, variando apenas o desenho do rio no rótulo e o nome da empresa que produz o vinho (canto inferior direito).
Disponíveis no mercado estão três vinhos. O Fernão Pires da Quinta do Casal Monteiro (2022) tem as notas florais da casta e algum fruto tropical (papaia), com uma boca a recuperar as mesmas notas e muita leveza (11,5% de álcool). O Batista's by Pitada Verde é menos exuberante de nariz (ainda assim com notas cítricas e flores brancas), mas com uma boca mais seca, com volume e acidez (12% de álcool). E o Campo de Tejo da Quinda da Lagoalva apresenta-se mais complexo, com o floral da praxe e até com notas que nos fazem lembrar castas alemãs. Na boca, é o mais untuoso dos vinhos em questão (12% de álcool) e aquele que se prolonga mais.
Por enquanto são três os produtores aderentes ao conceito apresentado a 20 de Junho (no novo Dia da Fernão Pires, numa iniciativa da Câmara Municipal de Almeirim), mas outros deverão juntar-se a um conceito que é mais trunfo para associar a região a uma casta. Embora no Tejo existam inúmeras castas brancas (regionais, nacionais e estrangeiras) e embora a nossa tradição seja o lote e não o vinho em varietal, a verdade é que a associação de uma determinada casta a uma região é um instrumento estratégico para chocalhar a mente de consumidores que julgam que o país vinícola é o Douro, o Alentejo e os Verdes e que o resto é paisagem.
O que o Tejo já conseguiu desde 2018 com o ruído à volta de uma só casta (na realidade são duas porque também está a recuperar a casta Castelão) é espantoso. Lá por Portugal ter história na produção de vinhos não quer isso dizer que tem uma população com literacia de vinho. É que não tem, mesmo (e convinha o sector meditar neste detalhe). Daí a necessidade de se trabalhar a educação vínica por via das castas — coisa que não entra em conflito com o conceito de vinho de lote e com vinho com identidade regional.
Devia ser obrigação de qualquer enófilo tratar por tu a casta branca mais plantada em Portugal, à semelhança do que um francês faz com a casta Chardonnay. E para isso não é preciso ir para a universidade.