Abubakar encontrou o “dia do fim do sofrimento” em Portugal

Da fuga do Darfur até à loja IKEA de Alfragide, onde trabalha, passaram duas décadas. Abubakar fugiu de uniformes militares em vários países para evitar ser morto e iludiu a fome e a violência.

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Sudanês, refugiado, trabalhador: Abubakar Adam Ismail encontrou paz e normalidade em Portugal MATILDE FIESCHI

Perseguições a tiro, família separada, mãe e irmãos mortos por militares, passar fronteiras e voltar atrás, recomeçar, aprender línguas, culturas e como contornar o sistema que submete os refugiados a um limbo em que nem são nacionais de um país, nem emigrantes noutros. Fome, labirintos burocráticos, campos de refugiados. Até que chegou o dia 25 de Fevereiro de 2019. “Celebro esse dia todos os anos como o dia do fim do sofrimento”, anuncia Abubakar Adam Ismail, orgulhoso trabalhador da IKEA e refugiado do Sudão, onde nasceu em 1986, numa pequena localidade do Darfur, perto da fronteira ocidental com o Chade.

Da vila de Dasuga, a meio caminho entre as cidades de Geneina e Zalingei, ali com o Chade à vista, o “senhor Abubakar”, como é carinhosamente conhecido, fintou a morte na Etiópia, no Egipto, em Israel, no Uganda. Até entrar em Portugal e encontrar o bem mais valioso que já teve: paz. Ausência de sirenes, dos baques secos do disparo das armas, do surgimento ameaçador de uniformes militares ou policiais que significavam balas prontas a sair na sua direcção.

“Em Portugal, encontrei a possibilidade de ter uma vida, um trabalho, uma casa”, diz Abubakar, 36 anos. Nem tudo é perfeito, mas por entre a comoção do desfiar das memórias, sempre um sorriso. Um sorriso de quem pode andar na rua sem estar sempre a olhar por cima do ombro. Um sorriso de esperança.

A longa estrada de Dasuga a Lisboa

Em 2003, o conflito naquela região intensificou-se e evoluiu para uma limpeza étnica e para o genocídio (que por razões políticas ainda é não é totalmente assumido nas altas esferas políticas internacionais), matando entre 300 e 400 mil pessoas e deslocando mais de três milhões. Abubakar tinha 17 anos, mãe, pai e quatro irmãos: duas raparigas e dois rapazes. Os rapazes e a mãe foram mortos pelos militares sudaneses, as raparigas e o pai seguiram noutra direcção, tendo perdido contacto com eles durante mais de uma década, até os descobrir num campo de refugiados no Sudão, onde o pai morreu no ano passado.

Há 20 anos, o adolescente Abubakar tentou refugiar-se na Etiópia, depois de penar em campos de refugiados no Sudão, onde chegou a passar fome, às vezes “três ou mais dias seguidos”. Levou uma primeira nega, mas insistiu e, com ajuda do IRC (sigla inglesa para Comité Internacional para Refugiados), acabou por ficar seis anos. “Arranjei trabalho a ajudar crianças a falar, porque nem sequer falavam devido aos traumas provocados pela violência. Também fui tradutor para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados [ACNUR]”, acrescenta.

Em 2009, o visto não foi renovado pela Etiópia e voltaram o pânico e o medo de morrer a qualquer instante. “Tentei voltar ao Sudão, mas não consegui. E então arranjei um passaporte do Sudão. Tive de pagar por um direito que já era meu [cidadania sudanesa]”, diz, rindo-se, ainda incrédulo.

Com esse passaporte, tentou entrar no Egipto, mas a cumplicidade entre este país e o regime sudanês barrou-lhe os planos. “Fui para Israel, para perto de Telavive”, conta. A tentativa de ir para o Egipto envolveu um risco de morte iminente muito elevado. “Tínhamos os militares egípcios a tentar matar-nos nas zonas de fronteira. Tinha de pagar a alguém para entrar e saber como movermo-nos sem acabarmos mortos. Éramos um grupo de cerca de 80 pessoas do Darfur e só 22 entraram. Todos os outros foram mortos pelos militares do Egipto”, diz muito rapidamente, fugindo dessas memórias.

Esteve três anos em Israel: “Senti-me bem e seguro, sem ouvir a cada momento o barulho de armas e de tiros.” Foi um período de acalmia na sua odisseia. Trabalhou como carpinteiro; com um grupo de colegas fazia decorações para festas. Ia tendo uma vida que lhe era até então desconhecida. Com trabalho, sem fome, com tecto. Aprendeu algum hebreu, estudou o que pôde, mas depois, e novamente por causa da política, sofreu outro golpe. “Em Israel, havia um grande debate sobre como lidar com os refugiados. Cancelaram-me o visto e ou ia para casa, ou para a cadeia”, desabafa.

“Voltei à Etiópia, onde estive sete dias e não consegui ficar outra vez. Tentei o Uganda, mas o país não tinha grandes condições, nem havia oportunidades para ganhar a vida. Entrei no Sudão do Sul”, recorda. Mais um jogo com as redes que lucram com os dramas dos refugiados. “Arranjei um passaporte, mas não consegui voltar a entrar em Israel. Mudei de nome e escolhi Tuto Angelo Cucu. Ainda hoje não sei o que significa. Escolhi-o por me soarem assim quase todos os nomes no Sudão do Sul. E consegui um visto para entrar no Egipto”, suspira.

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Sudanês, refugiado, trabalhador: Abubakar Adam Ismail encontrou paz e normalidade em Portugal MATILDE FIESCHI

O “dia do fim do sofrimento”

E nisto estava Abubakar em 2015, com 12 anos de pânico, fome e temor pela vida. Mas, agora, percebe que foi um outro ponto de mudança em direcção ao “dia do fim do sofrimento”. “Eu na altura estava doente e o visto permitia-me ir receber tratamento no Cairo”, recorda. Refez-se como pessoa, recuperou fisicamente e voltou a encontrar trabalho. “Fui professor de miúdos refugiados e conheci a minha mulher, que também é do Darfur, mas de outra zona”, conta, sorrindo perante a ironia.

Casaram-se e chegou 2019. Com o apoio da ONU, concretamente do ACNUR, chegaram os vistos para o casal entrar em Portugal. “Se me lembro do dia? Claro. Era 25 de Fevereiro de 2019, quando entrei em Portugal. Festejo esta data todos os anos”, diz e sorri com doçura.

“Entrámos e tivemos ajuda do Conselho Português para os Refugiados [CPR]. Foi fácil e pacífico, e foi a primeira vez que fui bem recebido e tive apoio para estudar, arranjar trabalho, comer. Encontrámos o que procurávamos: paz.” Por razões óbvias: “Não vemos militares com armas. No Sudão, se visse a polícia a 100 metros, fugia.”

Na cabeça de Abubakar, havia sempre uma grande pressão: arranjar trabalho. “Mas não foi fácil. Passámos dificuldades em encontrar trabalho e casa. Não sei porque é tão difícil, se estamos legais”, prossegue, incrédulo.

“O CPR permitiu-nos estudar a língua, enquanto vivíamos no campo CPR2, em São João da Talha [Loures]. Era bom, mas ao mesmo tempo sentia-me inútil, porque era obrigatório estudar a língua primeiro e só depois poderia encontrar um trabalho”, explica. “Mas ia para a escola a pensar: como vou arranjar trabalho e casa?”, sublinha.

Fez um curso prático de jardineiro em Camarate, e finalmente apareceu um trabalho. “Em três meses, arranjei trabalho como carpinteiro na construção civil, mas veio a pandemia e a empresa fechou”, diz. “No entanto, o CPR deu-me ajuda para fazer um curso na IKEA, em Alfragide. Em 2021, entrei neste curso, que é muito importante, porque nos ensina a língua, mas também nos dá trabalho e nos permite aprender a estudar a vida e conseguir ferramentas sociais”, diz, num discurso que espelha noções do programa de apoio a refugiados da multinacional sueca.

Enquanto estava no curso, tinha duas horas de Língua Portuguesa e duas horas sobre o trabalho como um todo, desde ser líder pelo exemplo a dominar a gestão logística ou a montar um móvel. Após seis meses, teve o primeiro contrato, durante o qual, em simultâneo, era jardineiro na Associação de Beneficência Luso-Alemã (ABLA), em Carcavelos. “Eram oito horas de trabalho: quatro na ABLA e quatro na IKEA”, explica, como que recomeçando a respirar.

“Se perguntarem pelo senhor Abubakar, toda a gente [na IKEA de Alfragide] sabe quem é”, diz, orgulhoso. Após dois contratos de seis meses, está agora numa situação laboral estável, com um horário de oito horas diárias.

“Estou a fazer um curso de três anos, de Cultura e Língua Portuguesa, na Universidade Nova, de manhã, e trabalho à tarde”, explica. Mas nem tudo está ainda conseguido: falta um lar – porque casa, local para viver, tem: habita um apartamento T1, em Agualva-Cacém, sob a alçada do CPR. “A única coisa que falta é uma casa. Já pedimos às autarquias de Cacém e Sintra, mas ainda estamos à espera de resposta”, anuncia sem baixar os braços.

E é só isso? “Não, claro que gostava de ter filhos portugueses. A minha mulher fez um curso de cozinheira, mas não conseguiu trabalho. Ela, que não falava nenhuma outra língua, hoje fala melhor português do que eu. Tem uns problemas de saúde e está a ser tratada no Hospital de Santa Maria, mas um dia gostava de ter filhos, sim.”

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Abubakar recebeu visto para Portugal com o apoio do ACNUR. “Se me lembro do dia? Claro. Era 25 de Fevereiro de 2019 quando entrei em Portugal. Festejo esta data todos os anos.” MATILDE FIESCHI
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