Pelo direito a morar neste torrão

Como os movimentos sociais pela habitação têm recordado “há muita casa sem gente e muita gente sem casa”, sejam imóveis vazios à responsabilidade do Estado ou na mão de privados que jogam à especulação imobiliária.

Nas últimas semanas, a Câmara Municipal de Almada pôs em marcha um apressado processo de demolição e desalojamento sem resposta habitacional concreta no bairro do Segundo Torrão, na Trafaria. A razão apresentada para este abrupto processo, em que dezenas de famílias foram obrigadas a esvaziar e abandonar as suas casas, é a segurança dos moradores, cujas habitações se encontram por cima de uma vala de águas pluviais em risco de derrocada.

Num bairro construído numa zona acidentada, com cerca de 40 anos e mais de três mil pessoas, é difícil compreender a forma repentina e atropelada como este processo tem sido conduzido. Por um lado, uma política de despejo e demolição simultânea, num processo violentíssimo para pessoas, muitas delas idosas e com problemas de saúde, que há muito habitam aquele território, e com crianças a cargo. Por outro, uma política de desalojamento sem um compromisso coletivo formalizado de alternativa habitacional permanente para os moradores.

Se a garantia da segurança e proteção civil é fundamental, é também verdade que nessa pressa das demolições e desalojamento tem-se violado aquele que é um direito fundamental, o direito à habitação, e é por ele que os moradores do bairro do Segundo Torrão se têm organizado através de reuniões de moradores, contactos com a comunicação social, providências cautelares em que várias famílias exigem que as demolições sejam suspensas até haver uma garantia de realojamento permanente, de uma petição pública e de uma manifestação – Sem Chave Não Saio! – que terá lugar hoje mesmo, a partir das 15h, no Jardim da Cova da Piedade. Este é um momento-chave, moradoras e moradores sabem-no, assim como quem se tem vindo a mobilizar pelo direito à habitação, sejam estas associações e coletivos de moradores de vários bairros autoconstruídos e de realojamento, a Habita e a STOP Despejos.

Neste momento, várias famílias estão em unidades hoteleiras, bungalows ou instituições de cariz social, sem que esteja definido quanto tempo lá poderão ficar e sem que exista um compromisso formal entre elas e as autoridades em como posteriormente terão uma solução habitacional efetiva, digna. Ao que se sabe, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IRHU), através do programa Porta de Entrada, assegura o arrendamento de alojamentos provisórios durante vários meses, mas não de forma definitiva. Sabe-se também que há muito se fala da construção de novos fogos para realojar os moradores do bairro do Segundo Torrão. Mas está este processo efetivamente a acontecer? Dá resposta às cerca de 500 famílias que habitam o bairro? Que critérios serão usados para a atribuição de casas?

Alojados provisoriamente fora da sua área de residência e sem usufruto dos seus pertences, estas pessoas veem abalroado o seu quotidiano familiar, laboral, escolar, a sua mobilidade e saúde, assim como se avolumam despesas com os gastos suplementares de uma mudança abrupta para um local onde nada se tem. Há quem tenha sido realojado provisoriamente numa instituição e vê-se obrigado a obedecer a uma disciplina institucional que é experienciada como se estivessem numa “cadeia”.

Há mulheres grávidas que não conseguem organizar-se para a chegada dos bebés que, aliás, não estão incluídos na dimensão do agregado familiar e, portanto, não contam para a definição da tipologia de habitação em que as suas famílias serão realojadas. Há quem se encontre excluído do processo de realojamento provisório e tenha sido reencaminhado para a Segurança Social, instituição que não tem respostas de realojamento definitivo e que, a poder fazer alguma coisa a este propósito, esta se reduz ao apoio no pagamento das primeiras mensalidades de arrendamento. Mas que arrendamento no mercado privado poderão pagar famílias que recebem no máximo o ordenado mínimo?

Este não é apenas um assunto sobre realojamento dos moradores do bairro do Segundo Torrão. Como os movimentos sociais pela habitação têm recordado “há muita casa sem gente e muita gente sem casa”, sejam imóveis vazios à responsabilidade do Estado ou na mão de privados que jogam à especulação imobiliária. Enquanto casas se transformam em airbnbs, o património edificado é transformado em hotéis boutique e habitações de luxo para uma classe média-alta nacional e internacional, e negócios familiares passam a restaurantes gourmet e lojas vintage. E, assim, vão-se aumentando para preços exorbitantes as rendas e o preço das casas e quem vive efetivamente a cidade é expulso dela.

Para uns, os mais pobres, os primeiros a ser expulsos dela, muitos deles negros e roma/ciganos, veem criminalizadas as formas de habitação que estão ao seu alcance – autoprodução e ocupação –, seguidas de demolição, despejo forçado, realojamento e guetização em territórios cada vez mais periféricos, quando não mesmo a rua. Para a classe média jovem, remediada, que cada vez mais não consegue comprar nem alugar casa no centro das cidades, e para quem os programas de apoio ao arrendamento têm uma dimensão completamente desfasada das necessidades existentes, a resposta é viver em cubículos, partilhar casa ou abalar definitivamente para a periferia.

Numa sociedade em que o direito à habitação nunca se sobrepôs – na vontade política e no imaginário coletivo – às lógicas de mercado, nem às lógicas coloniais de segregação e descarte, virá com certeza o tempo em que a pressão sobre a habitação atingirá níveis tais que, sectores distintos, da classe, à origem étnico-racial e género, se vejam lado a lado na luta pelo direito a viver neste torrão.

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