É tempo de tirar as máscaras

Continuamos sobre ruínas, sonâmbulos, em direcção ao precipício. Interessa-nos apenas sobreviver. A diferença é que agora estamos mais extenuados, abatidos, deprimidos.

Calma. Não são essas. São aquelas que colocamos todos os dias, agarradas à pele, e que nos permitem retardar ou dissimular o confronto com a realidade, quando sabemos que o barco está em chamas há muito tempo. Nos primeiros meses de cada ano são feitas notícias, baseadas em estudos, que confirmam aquilo que uma fatia significativa da população intui sem precisar de estatísticas: que vivemos num mundo de grandes desigualdades. Talvez o problema maior do nosso tempo.

Há semanas, no relatório anual da ONG britânica Oxfam sobre desigualdade, lá vinha que o aumento da riqueza dos dez multimilionários mais ricos do mundo desde o início da pandemia seria suficiente para que ninguém caísse na pobreza, ou que seria possível comprar vacinas para as pessoas do mundo inteiro, ou ainda que bastaram nove meses para os 1000 mais ricos recuperarem o que tinham perdido, enquanto os mais carenciados poderão levar uma década a chegar ao ponto médio antes da pandemia.

Por incrível que pareça, nada de novo. É verdade que a pandemia expôs e intensificou desigualdades (de rendimentos, raciais, de género, etc.), mas os relatórios dos anos anteriores são igualmente pornográficos. No ano passado, a mesma organização, concluía que dois mil bilionários tinham mais riqueza do que 60% da população mundial. Não espanta que, nos últimos anos, quando se tenta denunciar as desigualdades estes 1% sejam evocados em oposição aos 99% restantes.

Não quero negar o papel que esses 1% terão tido nas decisões económicas no Ocidente nos últimos anos, mas reduzir a questão social a essa oposição não permite perceber o que torna possível as assimetrias. Quando muito a denúncia dos 1% oferece consolo moral, mas a verdade é que o sistema que permite que isso aconteça não poderia funcionar sem a colaboração de parte das classes médias e do grande domínio ideológico e cultural do modelo neoliberal que foi sacrificando os que não se lhe adequaram.

No início da pandemia muitos imaginaram que se poderia abrir um novo ciclo que não acarretasse um regresso ao passado — seja ele personificado por fascismos ou experiências socialistas já ensaiadas — ou continuar um ciclo neoliberal incapaz do progresso social, de cuidar do bem comum, de promover a coesão colectiva, de garantir mais igualdade e de proteger a democracia e o planeta. Um ano depois, há mais exploração, direitos retirados, falta de contacto, isolamento e mais submissão a alguns dos efeitos perversos da digitalização. Continuamos sobre ruínas, sonâmbulos, em direcção ao precipício. Interessa-nos apenas sobreviver. A diferença é que agora estamos mais extenuados, abatidos, deprimidos.

O vírus actuou como amplificador destas crises. Mas o caminho não está escrito de antemão. Há quem resista. Há quem lute e se faça ouvir cada vez mais nos últimos tempos (negros, mulheres, comunidades LGBT+, algumas camadas de trabalhadores, etc.) para lá das vozes dominantes. Há quem esteja a aprender a fazer comunidade com aqueles que nunca tiveram acesso a lugares de privilégio. Há quem aposte no afecto e na empatia. Há quem imagine novas formas de organização social que não sejam apenas baseadas no que cada um possui. Há quem não encolha os ombros, utilizando a imaginação contra medos e regressões. Há quem esteja disposto a aprender a viver na incerteza para enfrentar forças negativas.

Nas crises há pessoas que parecem perder a cabeça e outras que ficam mais lúcidas. As crises promovem os efeitos mais contrários. Esperemos que sejam as forças criativas e lúcidas, que procuram um novo caminho, que venham a impor-se, embora neste momento possam parecer um pouco fechadas na sua indignação e também muito dispersas. Seja como for, estava mais do que na hora de tirarmos a máscara social. Já nos basta aquela que agora somos obrigados a usar.

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