Enfermeiros pro bono na vacinação? “Ministério da Saúde irá considerar todas as opções”

Bastonária da Ordem não vê com bons olhos recurso a enfermeiros em regime de voluntariado ou pro bono no processo de vacinação.

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Cruz Vermelha organizou grupo de enfermeiros pro bono para vacinação contra a covid-19 Daniel Rocha

O Ministério da Saúde (MS) não exclui a hipótese de recorrer ao corpo de enfermeiros criado em regime pro bono, pela Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), para ajudar na vacinação contra a covid-19, embora ressalve que este processo está “a ser assegurado pelas entidades” do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Aquele corpo de enfermeiros está disponível para ajudar em situação de crise e catástrofe no geral, o que inclui, entre outros, o cenário da vacinação em particular, se for solicitado nesse sentido. 

“O MS vê com agrado todas as iniciativas da sociedade civil que acompanhem a missão do SNS. No que respeita à execução do Plano de Vacinação contra a covid-19, o processo está a ser assegurado pelas entidades do SNS. Ainda assim, o MS irá considerar todas as opções que permitam robustecer todo o processo”, lê-se numa resposta enviada ao PÚBLICO pela tutela, quando questionada sobre se pondera recorrer àquele corpo de enfermeiros. 

A mesma resposta adianta, no entanto, que “sem prejuízo do envolvimento de várias entidades e de voluntários, os órgãos e serviços do MS têm instrumentos legais que permitem o recrutamento de recursos humanos, conforme previsto no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, na sua redacção actual, pelo que, a resposta a eventuais carências é dinâmica e flexível, procurando sempre garantir que as entidades estão dotadas dos elementos necessários à realização das tarefas e actividades no âmbito da mitigação do contágio e prevenção da covid-19, incluindo vacinação”. E nota que “as entidades do MS contam hoje com mais 2680 enfermeiros à luz desse regime”. 

Num despacho da CVP de 14 de Dezembro, pode ler-se que “atendendo à experiência histórica” desta instituição, “nomeadamente durante a pandemia de 1918” e “tendo em consideração a actividade viral da covid-19 no quadro da pandemia de 2020”, decidiu-se “criar o Corpo de Reserva de Enfermeiros da CVP constituído por enfermeiras e enfermeiros que se disponibilizam em pro bono colaborar em situação de crise/catástrofe, tal como previsto na alínea d), artigo 100º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros”. No mesmo despacho, lê-se ainda que “os serviços centrais da CVP” asseguram “o enquadramento institucional e as condições que garantam a qualidade e segurança das intervenções a realizar”. 

No comunicado que solicitava a adesão de quem quisesse ao projecto, pode ler-se que se pretende “constituir uma reserva que as autoridades de saúde accionarão se e quando considerarem necessário”: “Convidam-se enfermeiros, nomeadamente aposentados, a disponibilizarem-se em regime de pro bono, para aderirem a esta iniciativa humanitária. A CVP assegura o enquadramento institucional, formação e treino, equipamentos de identificação e de protecção individual, bem como o pagamento de despesas referentes a seguro de acidentes pessoais, também, pagamento de deslocações e alimentação”. 

Polémica 

A iniciativa motivou, porém, alguma polémica na altura. A bastonária da Ordem dos Enfermeiros (OE) explicou, mais tarde, ao PÚBLICO que não se opõe à criação daquele corpo de enfermeiros na CVP que actue em situação de crise ou catástrofe, mas não o vê com bons olhos no âmbito do processo de vacinação em específico. O presidente da CPV, Francisco George, afasta-se da polémica: “Foi constituído um corpo de reserva com 150 enfermeiros e o programa especial é gerido pela enfermeira Leila Sales. É um corpo que, quando for preciso, avança. Pode intervir nos testes, na vacinação, em contexto de crise ou catástrofe, em pedidos que venham a ser formulados pelas autoridades. Não há polémica nenhuma, a CVP assenta o seu trabalho em voluntariado. A Ordem dos Enfermeiros pode não aceitar voluntariado, mas isso não interfere com a actividade da Cruz Vermelha.” 

Também a enfermeira Leila Santos rejeita comentar a polémica: “Não me vou manifestar sobre essa situação. A CVP faz o seu trabalho e estamos a seguir os preceitos regulamentares. A CVP, desde a Primeira Guerra Mundial, que sempre teve enfermeiros de reserva para situações de excepção e de apoio em situações de catástrofe e crise. A CVP, dentro da sua história e âmbito de intervenção, constituiu este corpo de reserva para poder auxiliar as autoridades de saúde numa situação de crise ou catástrofe, de forma completar, quando o MS assim o indicar e necessitar, se vier a necessitar”.  

A mesma enfermeira diz que este corpo de profissionais, que não são todos da CVP e que inclui reformados e no activo, ainda pode crescer: “O corpo já tem 150 enfermeiros, pode vir a crescer. Neste momento, estamos a passar por uma pandemia e, se as autoridades de saúde assim o entenderem, têm este corpo de enfermeiros à disposição. Demos conhecimento à Ordem desta iniciativa, o despacho diz que os enfermeiros se disponibilizam pro bono para apoiar, se houver necessidade. Pode ser na vacinação ou noutras situações”. Leila Santos acrescenta que, independentemente da discussão em torno da questão do regime de voluntariado ou pro bono, “na prática” o que se está a dizer “é que há enfermeiros que se disponibilizam a oferecer o seu serviço sem receber remuneração”: “E estamos a falar de fazê-lo num momento restrito e limitado no tempo. Nesta altura de pandemia, este corpo pode vir a ser preciso ou não, se for, estaremos preparados. Não é a mesma coisa do que enfermeiros a trabalharem como voluntários para entidades com fins lucrativos”, ressalva. 

Em Dezembro, a bastonária Ana Rita Cavaco criticou, no Facebook, a iniciativa de se “recrutar voluntários para eventual participação na vacinação contra a covid-19”: “O Conselho Jurisdicional da OE proíbe voluntariado, por razões óbvias, até porque nestas situações não estão abrangidos pelo seguro de responsabilidade civil que a OE garante a todos os enfermeiros. Os enfermeiros não são os irmãos da caridade, nem o país precisa da caridade dos enfermeiros. É aliás um desrespeito para com todos os enfermeiros que estão desde Março, literalmente, de língua de fora e pelos cabelos.” Acrescentava ainda: “O país precisa sim do seu profissionalismo e alta qualificação nesta questão. Como é evidente já falei com o Sr. Presidente da CVP, que estimarei sempre e gostarei sempre. Tal como temos dito, o governo tem de ter uma cadeia de comando muito clara, na OE não é diferente, a cadeia de comando é clarinha como água e terei mão extremamente pesada para invenções ou más intenções. Num processo tão sério e importante não haverá espaço para parvoíces ou voluntarismos de pessoas com outras intenções. Sei bem o que digo. Não há margem para erro. Fica o aviso.” 

Mais tarde, ao PÚBLICO, reiterou que a OE não se opõe à criação daquele corpo de enfermeiros na CVP que actue naquele regime em situação de crise ou catástrofe, mas não no processo de vacinação em específico. E distingue voluntariado de regime pro bono: “Os enfermeiros, à luz do seu código deontológico e do parecer do conselho jurisdicional, podem fazer trabalho pro bono, como qualquer outra profissão regulada, e não voluntariado. O trabalho pro bono pode ser feito no âmbito da actividade profissional principal que a pessoa exerce, ou seja, exercer o mesmo trabalho com autonomia técnica e profissional e não cobrando por isso, outra coisa é fazer voluntariado que se enquadra numa legislação específica e que pode não ter a ver com o trabalho que é feito de forma profissional e autónoma.” No entanto, Ana Rita Cavaco continua a não ver com bons olhos nem voluntariado, nem regime pro bono no âmbito de processo de vacinação.  

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