Contra a covid-19, é preciso quadruplicar a oferta dos transportes públicos, diz especialista

“É caro? É, mas ter a economia fechada não é mais caro?”, argumenta o infecciologista Jaime Nina. “Os transportes públicos são um dos pontos nevrálgicos da transmissão”.

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Diogo Ventura

O infecciologista Jaime Nina defende que é necessário quadruplicar a oferta dos transportes públicos para permitir a distância necessária entre os passageiros, considerando que são um “ponto nevrálgico” da transmissão da covid-19.

“Os transportes públicos são um dos pontos nevrálgicos da transmissão”, afirmou, defendendo que “para manter o distanciamento, os autocarros, os comboios e o metro deviam ter fila sim, fila não, com passageiros”.

Mas para isso era preciso “ter quatro vezes mais carruagens, autocarros, e quatro vezes mais motoristas e maquinistas”, disse o infecciologista do Hospital Egas Moniz em entrevista à agência Lusa, a propósito do agravamento da situação epidemiológica da covid-19 em Portugal.

Se esta solução tivesse começado a ser pensada em Maio, tinha havido tempo para reforçar a frota e ter “maquinistas e motoristas suficientes”. “É caro? É, mas ter a economia fechada não é mais caro?”, questionou, argumentando que “só uma semana de economia fechada para tentar evitar [a propagação do vírus] pagava isto tudo e ainda sobrava muito dinheiro”.

O especialista lamentou que não haja “uma abordagem global” e que se esteja a ver “sector a sector”, prevendo “um problema com o Inverno”.

“Enquanto no Verão as pessoas evitam os transportes públicos, têm as janelas abertas, se estiver uma chuva desgraçada não estou a ver ninguém a andar de carro com as janelas abertas, nem a andar muito na rua quando pode andar de autocarro”, disse o professor na Universidade Nova de Lisboa, no Instituto de Higiene e Medicina Tropical e da Faculdade de Ciências Médicas.

Sobre a evolução da epidemia, Jaime Nina disse que já está na segunda “onda": “O Agosto foi um bocado molhado, houve chuva, e isso teve logo uma repercussão em toda a Europa, não só em Portugal”.

Mas, nesta fase, está a atingir mais os jovens, uma situação que disse estar relacionada com o aumento de testes: “Estão a apanhar pessoas infectadas que há três meses não eram apanhadas porque tinham uma doença mais ligeira, e como tal, a letalidade está a baixar porque há mais casos ligeiros”.

O infecciologista saudou o aumento da testagem, mas considerou que tem sido “muito lentamente” e “muito longe daquilo que deveria ser feito”.

A este propósito, fez uma analogia futebolística: “a táctica que Portugal e a Europa estão a usar é como se chamassem os dez jogadores de campo tudo em frente da baliza de olhos fechados a tentar apalpar a bola e não a deixar passar”.

“Era muito mais preferível andar a correr pelo campo todo atrás da bola” e tentar apanhá-la e controlá-la.

Exemplificou com o que países como Singapura, Taiwan, Hong Kong e Coreia do Sul estão a fazer ao nível de testes para apanhar os casos ligeiros e cortar as cadeias de transmissão.

“Portugal fez cerca de dois milhões de testes, Singapura vai quase em 100 milhões para uma população um bocadinho mais pequena que a nossa”, disse, observando que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, Portugal tem mais de 1900 mortes e Singapura tem 27, com um número de casos sensivelmente igual.

No seu entender, “há muita coisa que está a falhar no rastreio e no encaminhamento de casos” porque “o Ministério da Saúde está a utilizar quase exclusivamente os recursos próprios”.

“Depois não tem médicos e técnicos de saúde pública, não tem laboratórios de biologia molecular quando há um manancial enorme de pessoas disponíveis”, salientou.

Em Abril e Maio, contou, “quando toda a gente estava aflita porque não havia capacidade de fazer os testes todos”, os laboratórios de biologia molecular da Universidade Nova estavam fechados com as pessoas em teletrabalho, apesar de a faculdade os ter colocado ao dispor.

Por outro lado, podiam chamar os estudantes de medicina: “Era bom para eles porque estavam a fazer um trabalho útil e relevante para o seu curso e, obviamente, era bom para o Ministério da Saúde porque triplicava ou quadruplicava a mão-de-obra necessária para fazer rastreio de casos”.

Necessidade de mais estudos

A questão dos transportes tem levantado alguma polémica. Um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto concluiu não existir uma ligação directa entre as infecções da covid-19 e a utilização do transporte ferroviário na Área Metropolitana de Lisboa, considerando como factor mais determinante as questões socioeconómicas.

A análise incidiu em freguesias atravessadas pelas linhas ferroviárias de Azambuja, Sintra, Cascais, do Sul (Fertagus), do Sado e do Oeste, localizadas em concelhos da Área Metropolitana de Lisboa. Em declarações à Lusa, o professor Milton Severo, um dos autores, explicou que o objectivo era perceber a relação entre a proximidade das estações ferroviárias com a transmissão da covid-19, e o que se verificou foi que “o risco de infecção não era superior nas freguesias mais próximas das estações do que naquelas mais afastadas”.

Apesar de se ter estudado a proximidade destas comunidades às linhas de comboio, Henrique Barros, outro dos autores, também explicou ao PÚBLICO que é possível fazer-se a leitura de que não há uma relação directa entre a utilização de comboios e a infecção, uma vez que se usou “a proximidade como um indicador indirecto da utilização”.

Mas, depois deste estudo sobre os transportes, é preciso investigar mais: “O sujeito desta investigação foi a comunidade e, agora, precisávamos que fosse cada indivíduo. Obtivemos uma conclusão global sobre a comunidade, o que é preciso agora é chegar a uma conclusão, tendo em conta as características de cada indivíduo”, nota Henrique Barros.

Por isso, uma equipa de investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e da Escola de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa vai estudar os factores de risco para a covid-19, tendo em conta o comportamento de cada pessoa e, para já, na região de Lisboa e Vale do Tejo. 

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