Inventário de coisas belas

Comovo-me com tudo o que soe vagamente a bondade. Fiquei assim desde que nos foi interditada a rua e o beijo, tornei-me uma grandessíssima piegas.

Foto
Paulo Pimenta

Vi há dias a imagem de um ninho de pássaro, construído entre um espelho retrovisor recolhido e o vidro da janela da viatura. O respectivo autor da obra (um pardal, talvez, não entendo nada de aves: sinto até uma certa fobia, mas nos últimos tempos tenho falado nelas, não sei dizer porquê) encontrava-se literalmente aninhado e tranquilo. Ocupava o carro, que certamente não circulava há semanas, como uma propriedade sua. Entre o espelho retrovisor e o vidro do carro, um ninho de pássaro.

Aquilo comoveu-me. É que os outros animais, na nossa ausência e alheios aos nossos dramas, arranjam maneiras simples de ocupar as cidades que construímos e de fazer delas, agora tranquilamente, um habitat natural. A natureza arranja sempre forma de ser.

Vi também uma outra imagem que retive na memória. Num supermercado, uma bancada cheia de sacos de pão com o seguinte letreiro: “O pão é de ontem mas é oferecido hoje com todo o amor e carinho. Se hoje não tiver dinheiro para comprar, por favor, leve um saco.” Aquilo comoveu-me. É claro que as grandes superfícies têm capacidade para oferecer mais do que sacos de pão da véspera, mas não estou capaz de cinismos nesta altura, que antes diria do campeonato, mas agora direi da pandemia. É pão e é oferecido. A oferta de pão tem um significado antiquíssimo, representa um dos alimentos essenciais e no cristianismo, como toda a gente sabe, é o corpo de Cristo. Tenho noção de que a atitude da empresa ao oferecer pão não teve qualquer pretensão religiosa, mas numa época em que ir ao supermercado se tornou um acto temerário, que pode pôr em risco o próprio e a família, ver aquilo, para mim, teve uma carga espiritual de bondade, até.

Vi também uma fotografia de um homem que segurava um cartaz, encostando-o ao vidro de um hospital, do lado de fora. No placard podia ler-se: “Obrigado por salvarem a minha mulher. Amo-vos.” A expressão que o homem carregava no rosto (era pesada, sim) daria para sintetizar todo o medo e gratidão que um ser humano pode sentir. A expressão do homem era grandiosa, porque (e como alguém disse) — o sublime é o horror tornado belo. Estava ali tudo, naquele rosto, naquela imagem.

Tudo isto vou contemplando através da minha janela virtual. Da real, vejo árvores que se agitam com o vento, quando o há, o sol que espreita até às 14h37 (depois muda de posição e desaparece), o vizinho abatido, sempre de pijama na varanda do primeiro andar, e uma enorme e delicada descoberta audível. Há um vizinho, não sei dizer exactamente onde, não o vejo, só o oiço. Todos os dias, a partir das 22h, põe-se a cantar acompanhado por uma guitarra. Música portuguesa, essencialmente fado e eu nem gosto particularmente de fado. Mas aquilo comove-me tanto. Oiço-o cantar e da sua voz exala uma fraternidade simples (saudades de um abraço, será?). Canta por uma meia hora, não mais. Percebe-se que não quer incomodar nem exibir-se, está apenas a expressar-se. E eu, sozinha no meu quintal, comovo-me. Comovo-me com tudo o que soe vagamente a bondade. Fiquei assim desde que nos foi interditada a rua e o beijo, tornei-me uma grandessíssima piegas.

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