O gato que nos une

Há professores que trabalham no quarto. Outros, preferem a sala. Alguns, a varanda. Poucos, o jardim. Mesmo em tempos de isolamento por causa da pandemia do novo coronavírus, há quem não consiga ficar em casa. Nos próximos dias, a crónica fotográfica Picar o Ponto apresenta sete profissões que não podem parar.

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Adriano Miranda
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São 8h. Não há jovens em grupo. Nem há jovens solitários. Não há, ponto. Não há pais atarefados. Não há buzinas nem gritos. Insultos também. Não há o beijo de despedida. Não há o beijo de amor. Não há as passas num cigarro partilhado. Não há os gritos das brincadeiras. Não há o remate fantasia à Messi. Nem a cabra cega. Não há o nervoso miudinho antes da frequência. Não há a troca de cábulas para o teste. Só um cão vadio. Sem ninguém para lhe dar um pouco do croissant com chocolate. Nem uma festa. Nem a indiferença. Nada. Só os edifícios. O betão. O ferro. O vidro. O plástico e a resina. O mundo sonhado pelo físico norte-americano Samuel T. Cohen, pai da bomba de neutrões. A arma nuclear “mais saudável e moral jamais concebida, pois, quando a guerra termina, o mundo permanecerá intacto”. Esqueceu-se de dizer, Samuel T. Cohen, que o mundo ficaria intacto com uns milhões de seres humanos a menos.

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A bomba de neutrões já não existe. Para bem da humanidade. Mas as guerras continuam. Com outros homens e com outras armas. Com os interesses do costume. O mundo está em guerra. A Terceira Guerra Mundial, como diz a minha mãe. Tenho-a como uma mulher sábia. A luta contra um vírus, não contra nações. Ninguém sabe quantos tombarão. Muitos. Milhares ou milhões. A arma parece ser ficar em casa. Para quem tem casa. A arma parece ser lavar muitas vezes as mãos. Para quem tem água potável. A arma parece ser alimentarmo-nos bem. Para quem tem que comer. A arma parece ser a medicina. Para quem tem hospitais. A arma. As armas. Não estão ao alcance de todos. Uns são soldados de escafandro. Outros, soldados remendados. Vamos continuar a ter as ruas vazias. Por muito tempo.

Paula, professora do primeiro ciclo, já não se levanta às 7h. Já não bebe a bica antes de ouvir o toque da campainha. Diz que já sente saudades. “Sinto falta dos sorrisos dos meus alunos.” Estar em casa é um tormento. Tenta manter os hábitos normais. “Visto-me como se fosse para a escola.” O seu escritório foi transformado em sala de aula. Falta o quadro. As mesas e as cadeiras. E falta o fundamental – as crianças. Agarra-se ao computador e envia fichas aos alunos. No fim, distribui beijos. Como se estivessem em planetas distantes. “É estranho. Muito estranho.” Fátima corta cartolinas. É para “um aluno que ainda não sabe as cores”. Também sente saudades. Como a Guiomar, “que só quer é que isto acabe.”

São apartamentos. São moradias. Entro com todo o cuidado. De máscara e luvas. Não toco em nada. Presos e à espera estão agregados familiares inteiros. Agarrados às notícias. Sempre com a esperança que o pivô lhes diga que tudo isto acabou. Mas tardam as boas novas. Há professores que trabalham no quarto. Outros preferem a sala. Outros, o escritório. Alguns, a varanda. Poucos, o jardim. Trabalhar em casa para um professor “não é nada estranho": “Sempre o fizemos. São horas e horas a preparar aulas, a corrigir testes, a fazer grelhas de avaliação.” Pilar gosta de ter o computador no regaço. Trabalha no quarto. Quer ir para a escola. Mas tudo isto está a ser desafiante. Mas “muitos alunos não têm computador, impressoras ou Internet, o ensino não está a chegar a todos”.

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As escolas e as universidades continuam sem alunos. Tudo está suspenso. Elizabete procura o ar da varanda. Celeste procura a sombra da palmeira. E João dá uma aula por Skype. Uma aluna mostra o seu gato. “Nunca pensei ter um gato nas suas aulas, professor.” Riem-se. Um riso colectivo sem o eco da sala de aulas. Só falta o reencontro. E esse também chegará.

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