Ovar, concelho fechado por todos os lados — menos por um

O Governo declarou calamidade pública no município, mas até às 11h30 desta quarta-feira havia pelo menos uma estrada secundária sem qualquer patrulha das forças de segurança.

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Quarta-feira, 18 de Março, 9h15. O concelho de Ovar está em situação de calamidade pública desde as 00h e todas as entradas no município são controladas por patrulhas das forças de segurança. Mas há pelo menos uma entrada onde, a esta hora, tudo funciona como ontem ou há dois dias. Vimos do concelho vizinho de Santa Maria da Feira, estamos na Rua do Monte, na freguesia de Espargo, e abrandamos a marcha, a contar com uma patrulha. Nada. Seguimos em frente e eis-nos já na Rua das Pedras de Cima, freguesia de Arada, concelho de Ovar.

Continuamos a percorrer as ruas semidesertas de Arada. De vez em quando, passa um carro, alguém a pé ou de bicicleta, mas de resto a vida está fechada dentro das portas das casas.

Arada; Maceda, uma outra freguesia do município; EN109; e de repente já estamos no centro de Ovar. Às vezes parece que estamos numa cidade-fantasma ou no cenário de um filme. Vemos filas para a Farmácia Rodrigues, para o Pingo Doce, homens e mulheres de máscara e luvas a segurar um saco de pão na mão.

Nunca saímos do carro. Vamos observando tudo pela janela, mas mesmo assim conseguimos perceber que Ovar está envolta num silêncio sepulcral. Quem a viu e quem a vê: ainda há três semanas era a folia do Carnaval, um dos maiores do país, e agora esta cidade está como está. Triste, despida, à espera que o surto de covid-19 a deixe respirar melhor. No concelho estão confirmados 30 casos de doentes infectados – e a contar. O presidente da câmara municipal, Salvador Malheiro, apontou na terça-feira a existência de “12 casos suspeitos com altíssima probabilidade de serem confirmados”

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Abandonamos o centro de Ovar em direcção ao Parque Industrial do Olho Marinho. A maior parte das empresas aparenta estar fechada. O Cash & Carry Malaquias está aberto, com gente a aguardar a sua vez para entrar. Mais à frente, a loja de alimentação para animais de estimação Pet Planet tem as portas abertas.

Voltamos a circular em direcção a Arada, usando o mesmo caminho. Às 10h10 continua a não haver qualquer patrulha. Uma hora e meia depois, duas residentes na freguesia, que pedem o anonimato, confirmam que o mesmo acesso ao concelho de Santa Maria da Feira permanece aberto. E garantem que tem “havido gente a passar para o Pingo Doce da Feira sem qualquer problema”. “Acabei de ver um senhor com um saco de compras, vinha de lá e disse que há muita gente a ir.”

Apesar de várias tentativas para poder actualizar esta informação, o PÚBLICO não conseguiu contactar Salvador Malheiro. E está ainda a tentar obter informação do Comando Geral da GNR. 

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Embora esta estrada secundária tenha estado a descoberto, a reportagem do PÚBLICO encontrou esta manhã várias patrulhas a bloquear as entradas e saídas do concelho. No limite do concelho da Murtosa com o de Ovar, na rotunda à saída da Ponte da Varela, os agentes da GNR destacados de Aveiro, não conhecendo muito bem o território, às vezes ficavam na dúvida se deviam ou não deixar passar quem se aproximava. Havia quem apresentasse documentos das respectivas entidades patronais a justificar a necessidade de ir trabalhar, mas na maior parte dos casos estes não eram aceites.

Num dos carros, o fotojornalista do PÚBLICO testemunhou duas mulheres alegando que eram funcionárias de um hotel de Ovar que vai receber agentes da PSP que virão patrulhar o concelho e que, por isso, precisavam mesmo de ir trabalhar. À primeira tentativa não conseguiram, mas pelo rádio chegou entretanto a autorização superior para que o agente permitisse a entrada.

Nas imediações, havia quem comentasse que, àquela hora – por volta das 9h30 –, algumas entradas no município vareiro estavam a ser feitas pela ria, justamente nas proximidades da Ponte da Varela.

“Quem é que vai comer se nós pararmos?”

Pelas 8h30, em Esmoriz, a freguesia mais a norte do concelho de Ovar e que confina com os concelhos de Espinho e Santa Maria da Feira, a patrulha da GNR bloqueava a entrada na freguesia junto à Cordex, uma empresa que fabrica cordas e redes. Vários trabalhadores concentravam-se por ali. Residiam quase todos fora da cidade e aguardavam instruções sobre o que deveriam fazer. Jorge Cardoso, da direcção do departamento de produção, deu-lhes indicações de que deveriam seguir para casa.

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“Tenho estado em contacto com o engenheiro Caldeira [um dos directores da empresa] e a indicação que temos até ao momento é a de que quem for residente no concelho pode decidir, sob sua responsabilidade, vir trabalhar ou não. Os outros, os que residirem fora do concelho, devem ir para casa”, aconselhou às cerca de duas dezenas de funcionários que por ali aguardavam. Ainda lhes pediu o contacto telefónico, para os ir informando da evolução da situação. Ao PÚBLICO, Jorge Cardoso referiu que a empresa aguarda por indicações mais precisas para saber como serão os próximos dias. “Foi tudo muito rápido. Por exemplo, temos aqui produtos que precisam de sair para o mercado externo e ainda não sabemos como vai ser.”

O mesmo desalento era partilhado por Daniel Sousa, gestor de logística da David Neto, uma transportadora que se situa a “uns cem metros” desta patrulha. Encontramo-lo a tentar esclarecer dúvidas com o cabo Pedro Pinto, que tem mandado parar toda a gente que se aproxima. Daniel quer saber o que diz aos seus clientes, que, ao telefone, perguntam se pelo menos os produtos alimentares serão entregues. Está aqui desde as 7h e tem muito poucas respostas. “Compreendemos a situação, mas é preciso ver que nós também trabalhamos com bens essenciais. Temos alguns motoristas a trabalhar, os que são residentes no concelho, e outros que não conseguem passar. É uma situação muito complicada.”

Nelson Costa, motorista há 17 anos, é um desses casos. Residente em Mozelos, concelho de Santa Maria da Feira, está ligeiramente indignado. “Nós, motoristas, é que vamos abastecer este país e estamos aqui frustrados por não nos deixarem passar. Eu falo por mim: estou muito frustrado por não me deixarem desempenhar a minha função. Quem é que vai comer se nós pararmos?”

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