Amazónia: Mergulhar na floresta

No coração da selva, Mamirauá, Património da Humanidade, é a primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentável brasileira. Na Boca do Mamirauá, no âmago da maior várzea do mundo, sentimos o poder da Natureza.

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Esta é a história dos rios, da terra, da Natureza e das almas que, em consonância, a habitam. Para mim, todo um universo fantasioso e aparentemente utópico. A primeira escala foi na capital do Estado do Amazonas, Manaus, que dista a apenas três graus da linha do Equador, convertendo a buliçosa urbe numa espécie de caldeirão abrasador, seja no período seco ou húmido. Estamos na época seca, a temperatura embate nos 40 graus e a humidade, asfixiante, adicionou uma película de água à minha pele que perdurará até ao regresso à casa da partida. E nem o tombar das sombras nocturnas sobre a malha urbana atenua a canícula manauara – um castigo para o corpo.

Um punhado de dias sobejou para sentir o pulso à cidade que, desordenadamente, floresceu assente em vários crimes ambientais e arquitectónicos, nas margens do caudaloso Rio Negro. Ofuscadas na imensa selva de pedra, é, ainda assim, possível vislumbrar algumas construções da época áurea do ciclo da borracha, quando o bem extraído das seringueiras fazia fama internacional e injectava avultadas divisas em Manaus.

Errar pelo Largo de São Sebastião e calcorrear a calçada portuguesa é como adentrar na máquina de um tempo glamoroso, principalmente quando nos detemos diante do majestoso Teatro Amazonas, símbolo remanescente do ciclo da borracha e marco da cidade. A obra deste monumento, que actualmente recebe os principais espectáculos culturais do Estado, foi iniciada em 1881 e demorou década e meia a concluir e por uma explicação plausível: todas as peças provieram do exterior, numa época em que o transporte fluvial era o único existente. O ferro usado era escocês, o mármore italiano, os cristais franceses e a madeira, de origem brasileira, fora manufacturada na Europa.

No dia seguinte, uma passagem pelo célebre porto fluvial de Manaus, agitado por um vai-e-vem incessante de pessoas e mercadorias expelidas pelos icónicos barcos de três pisos, e um resto de tarde a errar pelas artérias atulhadas de vida e de sons quentes no denominado centro histórico.

Cumprida a visita fotográfica que ainda me levou à promenade de Ponta Negra ou a parques-oásis interessantes e ao famoso encontro das águas (Solimões e Negro), o foco mental mantinha-se à distância de 600 quilómetros, em Tefé, a maior cidade próxima a Mamirauá e a segunda em tamanho do Estado do Amazonas (70 mil habitantes). A travessia aérea, de pouco mais de uma hora, redunda numa experiência inaudita. A moldura da janela exibe um filme sem movimento nem atores visíveis, mas sobrevoar aquele imenso corpo vegetal de artérias líquidas é uma experiência inestimável.

Porta para o paraíso

Os imprevistos são as estórias repisadas de uma viagem. Pese agendado, ninguém me aguardava no espartano aeroporto. Nem a mim nem a um grupo de oito biólogos, sete gaúchos e um costa-riquenho, o Óscar, que aproveitaram a “desculpa” de um congresso em Manaus para sentirem o pulso à floresta, em decalque ao meu percurso. Vi-me envolvido num grupo que à partida não desejaria mas que, no desfecho, se revelaria enriquecedor. Desculpas para cá e explicações para lá, num ápice estávamos no porto de Tefé, onde, sob forte canícula, impera o ritmo vagaroso e despreocupado dos tefeenses, uma cidadezinha no meio de nenhures mas estabelecida precisamente a meio caminho entre Manaus e a fronteira tripartida: Brasil, Peru e Colômbia.

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Confesso que só o enxame de motociclos quebrou um pouco do romantismo daquela paisagem marinha, um manancial de motivos que dariam inúmeras aguarelas e óleos a William Turner. Antes de seguir para o rio Tefé, afluente da margem direita do gigante Solimões, que muda de nomenclatura para Amazonas quando, em Manaus, encontra o rio Negro, avio-me em terra, no caso, no Mercado Municipal. Deparo-me com uma espécie de sinopse do que haverá nas cercanias: latões com açaí, cachos de bananas, peixes aguardando comprador e gatos esperando as sobras dos assados que luziam no cimo da escadaria de betão.

Os decibéis proferidos por um pastor em cima de uma coluna de som não despertavam o sono profundo de algumas “ovelhas tresmalhadas” que dormiam debaixo das bancas de legumes. Para além das frutas, abastecemo-nos de um repelente na barraca do taxista que nos transportou do aeroporto ao porto de Tefé. Garantia de sucesso a cem por cento contra o mosquito da malária, que é freguês habitual nestas paragens.

Foi com algum desalento que abandonei este inusitado modus vivendi, mas Choca aguardava-nos na lancha para cumprir a última etapa, por sinal a mais fascinante. Por entre uma miríade de canoas e embarcações de portes vários, a lancha já se desenvencilhou daquele caos organizado e seguiu em direcção ao Solimões, ou Amazonas, assim baptizado logo na nascente no Peru, onde estão as raízes de Choca, expressas nas suas feições acobreadas de linhas arredondadas, de lábios carnudos e nariz achatado. De gestos mansos e olhar de rapina, Choca fala o quanto baste, bem ao jeito dos caboclos, assim designados por resultarem da fusão de sangue indígena com o do homem branco.

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Conhecedor profundo dos segredos da floresta, será o nosso anfitrião por alguns dias, na sua casa-pousada na comunidade Boca do Mamirauá. A jornada adquire contornos mágicos mal a embarcação adentra nas águas barrentas do Solimões. Cruzamos algumas comunidades ribeirinhas, no alto dos barrancos e, mesmo assim, assentes em palafitas, para evitar inundações na época das cheias, cujas águas sobem aos 15 (!) metros, arrastando, entre outros, animais como os jacarés – a última enchente, a de 2014, foi a mais devastadora de que há memória, por culpa do famigerado “El Niño”.

Boquiabertos pelo encanto do lugar, passamos pelo primeiro encontro das águas (já observara o fenómeno em Manaus, entre os icónicos rios Negro e Solimões). Aqui é o rio Japurá, de águas escuras, que abraça o alvo Solimões. Apesar de o acontecimento não ser tão expressivo, não deixa de impressionar, tal como assistir, de camarote, às acrobacias traquinas dos botos, parentes próximos do golfinhos, que aqui vivem em liberdade total, havendo duas espécies a anotar: uma mais ameaçada e endémica, o cor-de-rosa e, estes, os cinzas ou tucuxis, mais abundantes. Seguindo pelo Japurá acima, atentamos nos encantadores ninhos dos japiins-xexéus. O nome é tão curioso quanto os ninhos em forma de saco pendurado, confeccionados nos ramos das árvores, evocando decorações natalícias. Trata-se de uma ave, de tonalidades garridas, conhecida por viver em bandos, fazendo um ruído cacofónico, por imitar as outras aves, não tendo canto próprio – segundo Chaco.

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O Sol já vai alto e toca-nos com os seus braços abrasadores, mas o jorro de água proveniente da proa ameniza a fritura, ainda assim menos desumana que a sentida em Manaus. Alguns caboclos, uns solitários, outros acompanhados, cumprem as travessias diárias, percorrendo as estradas fluviais da Amazónia. Asfalto ou terra batida só mesmo nas localidades dignas de toponímia.

Cobras, jacarés e futebol

A travessia passa pelas franjas de uma cidadezinha chamada Alvarães, com pouco mais de 15 mil habitantes, e boa parte do Mamirauá pertence a este município, para onde algumas pessoas da reserva se mudam na época das cheias – e onde estudam as crianças a partir dos dez anos. Logo a seguir, adentramos num enorme lago. A localização valeu o nome da comunidade onde iríamos ficar: Boca do Mamirauá. A lancha ancora num canavial que esconde crocodilos e piranhas. Estouro com a escala do entusiasmo. “Era isto mesmo”, pensei em surdina.

Uma ponte em madeira tosca conduz-nos do rio à Comunidade, dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável, a maior área de floresta inundada protegida no mundo. Acrescenta o nosso guia Tito, com convicção: “Este é o melhor local para visitar a Amazónia, em função da riqueza e endemismo da fauna e flora da região”. E alguém duvida? Degustado um delicioso pirarucu fomos conhecer o minipovoado enquanto se construíam mais camas, por falta de leitos para os hóspedes. Sem pressões ou stresses. “Esta comunidade é que nem coração de mãe, cabe sempre mais um”, atira Ruth, cozinheira, esposa de Choca e uma espécie de responsável política pela comunidade.

As crianças estavam num frenesim inaudito perante a presença daquele pequeno grupo de gringos, não fossem (também) os gaúchos cara-pálidos e maioritariamente descendentes de europeus. Fomos desafiados para uma partida de futebol, uma modalidade que apenas precisa de duas balizas e uma bola. E gente para dar uns pontapés na redondinha. Mas aqui todos são praticantes, independentemente do sexo e idade. Equipas divididas e tudo pronto para começar, ou talvez não... invasão de campo! Uma cobra resolveu fazer-se convidada mas fora rapidamente detectada pelo alarme vozeiro dos petizes, que a cercavam entre a curiosidade e o pânico. O bichinho estava encurralado e pronto a atacar – “não sabemos se é venenosa ou não, mas é das que ataca com o corpo, como um chicote”. As explicações fizeram-me recuar, aguardando que o convidado indesejado seguisse em direcção da mata. Foi um primeiro impacto selvagem, mas, na verdade, o intruso ali era o ser humano.

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Também não havia apanha-bolas. Porquê? Porque de um lado temos um braço da lagoa de Mamirauá apinhado de piranhas e crocodilos; do outro temos uma floresta cerrada repleta do sei-lá-do quê e de onças furtivas que impedem longos passeios ao luar. Olhei para os meus pés descalços e mandou o bom senso que calçasse o par de meias não se repetisse a invasão do ervado... A contenda termina ao lusco-fusco, que aqui pousa mais cedo. Nota explicativa: apenas perdi o jogo porque o meu guarda-redes (que teria uns 8 anos) não chegava à trave da baliza!

Nessa noite, e com Chaco aos remos, apenas Gabi me acompanhou na focagem do jacaré. Pares de olhos surgem amiúde por entre as sobras nocturnas para logo emergirem nas águas frias amazónicas. Na majestosa abóbada celestial pende um dos grandes luminares, a Lua, um farol que guia a nossa travessia num breu total. É a hora em que os animais sobem ao palco para as diversas actividades, desde a caça à reprodução. Representações que tornam o silêncio ensurdecedor, não descodifico os sons da floresta, clamores à desgarrada que assemelho a chamamentos humanos –  “ei...ei...ei...”. “Quem nos interpela?”, pergunto, aturdido. “São sapos [risos]; eles produzem este som muito estranho”, informa Chaco, de fala mansa.

Logo a seguir, novo alvoroço: eu e a parceira de aventura pulamos do banco do barco quando escutamos um som forte a nossos pés, batendo com força no chão de alumínio. Era um animal sem dúvida, mas não o víamos. Juntámos os feixes das lanternas e do meu frontal até alumiarmos um peixe dentuço a debater-se pela vida. “São piranhas brancas. Elas saltam da água e acabam por entrar no barco, mas não são perigosas, apesar dos dentes em serra”. (Nota amazónica: por aqui, vários peixes começam por “pira”, que na língua indígena tupi significa “peixe”. Destes, o mais famoso é o pirarucu, nosso almoço, mas há ainda a pirarara, o pirantaíma, o pirabotão, etc. Em tupi “anha” quer dizer “dente”, ou seja, “piranha” é “peixe com dentes"). Gabriela, a intrépida bióloga, lá pegou no bichinho de beiças ameaçadoras e devolveu-o ao manto líquido. Um fenómeno com direito a iterações, num concurso de saltos entre piranhas e sardinhas. A busca pelo jacaré passou de fundamental a aleatória perante o espectáculo que a selva nos presenteava.

"Rema faz o remo leve
sente o remo da nascente
silêncio absoluto no rio
viajar ao universo
na estrada pelas águas
há uma nave do interior...”
(Pescador- Raízes Caboclas)

A quebra, aparentemente normal, no gerador que fornece energia eléctrica à casa-pousada possibilitou ao grupo um jantar romântico à luz de velas. Aqui, luz artificial só umas horas e à noitinha, as suficientes para ressuscitar os aparelhos tecnológicos e tratar da higiene pessoal. Fui brindado com um quarto privativo enquanto o grupo sulista se distribuiu pelas camas feitas prêt-à-porterou por redes dispostas ao longo de um compartimento apenas protegido por tecto e paredes de redes metálicas – os insectos são muito activos ao final da tarde, altura em que nos banhávamos em repelentes num ritual de extrema-unção.

Antes de me recolher, assomei à sacada para sentir o poder da liberdade e unir o meu coração ao pulmão da Terra. Pardacento, ao fundo, o rio reflectia a luz mortiça de uma lua a meia altura, permitindo ver a agitação dos pirarucus (chegam a atingir três metros e 200 (!) quilos e há quem lhes chame o bacalhau da Amazónia). O seu porte é de tal forma intimidatório que a fricção das barbatanas nas águas produz sons de tiros. Ao largo, jacarés montando emboscadas enquanto, na mata, macacos urravam ocasionalmente.

O sonho e realidade são um casal perfeito. Não os distingo.

A culpa é do uacari

O despertar faz-se aos primeiros alvores. A vida na selva madruga ao som do piar incessante da passarada, permitindo iniciar as actividades antes do astro-rei se esforçar por calcinar a maior várzea do Planeta. Cruzei-me com Chris, o birdwatcher. O maduro londrino congratulou-se por ter alguém com quem comunicar, depois de longos dias de abstinência de comunicação em inglês. Estava de partida. Encontrá-lo-ia mais tarde, em Tefé, na Pousada Multicultural, base para novas incursões, eventuais contas para outro rosário. Chegara a hora para a primeira expedição terrestre.

Camisas abotoadas até ao cocuruto para proteger, sobretudo, dos enervantes carapanãs, parentes próximos das nossas melgas e mosquitos, boné na cabeça e galochas até aos joelhos, máquina pronta a disparar e os sentidos lubrificados. A aula do “professor” Tito prolongou-se pelos seis quilómetros que percorrem a “trilha uacari”, que nesta altura do ano está “seca”, eufemismo porque a humidade está sempre presente, sobretudo no solo – no período de cheias, a canoa substitui a caminhada.

Os óculos de sol são desnecessários naquele teatro de sombras e luzes entubadas que, a custo, trespassam pela copa das árvores num admirável mundo novo, totalmente vertical – os olhos estão sempre virados para cima. Senti-me num trapézio sem rede ao trespassar emaranhados de cipós (ou lianas), parasitas que crescem a partir de gavinhas, de cima para baixo. Quando encontram uma árvore, dão-lhe o chamado abraço da morte, estrangulando a árvore parasitada, que acaba por desfalecer (já Júlio Verne os mencionava em A Jangada, em 1881).

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Detemo-nos perante uma catedral vegetal. “Esta árvore chama-se apuizeiro, e é formada por centenas de cipós que se colam e descolam, deslaçam e entrelaçam uns nos outros, formando uma árvore verdadeiramente singular. Quem quiser pode entrar no seu interior, ainda que muitas sejam reduto das perigosíssimas jararacas. Candidatos?”, gracejou o amável Tito. Desconfio do silêncio embusteiro da floresta, aqui tudo mexe, pica e ferra. Já não sabia para que lado fica o rio nem a comunidade, mas o nosso guia, mesmo com pouco estudo, tem uma sabedoria de poucos. Conhece cada canto da floresta, cada árvore, cada bicho. É incrível caminhar do seu lado e escutar as suas histórias. Para complementar a minha fortuna, o grupo de biólogos colocava rótulos a cada animal avistado: “Olha um macaco-guariba e ali um bando de garças brancas e um bando de garças-pantaneiras, que emitem sons estridentes; e acolá um gavião de bico-de-gancho”.

 Depois, ainda, os bicos-de-asa e um sem número de aves cujos nomes científicos se assemelhavam a impropérios. Giuliano Galvani, gaúcho e gremista, conhecia-os dos livros mas agora estavam ali ao seu dispor, numa aula de biologia ao ar livre. “Aqui existe uma biodiversidade admirável, daí termos feito o desvio de Manaus para cá”, justificou. Já junto ao rio, tentámos entrar em contacto mais de perto com um jacaré, mas as sábias palavras de Tito tiveram um efeito preventivo “Atenção que eles são rápidos a trepar ladeiras.”

Mais à frente, ia na dianteira com Gabriela quando avistei, ao alto, um folivora, popularmente conhecido por preguiça. Foi uma vitória pessoal ter vislumbrado, sem ajuda de outros olhos, aquele espécime, mesmo camuflado com as mesmas tonalidades cinzas do tronco onde estava abraçado. Ainda que de movimentos extremamente lentos, daí o cognome, os meus parceiros de caminhada já não chegaram a tempo de o ver ou fotografar; aliás, nesta penumbra, registar momentos para a posteridade é uma missão hercúlea, pelo que o melhor é perpetuá-los na memória. “Eles andam sempre disfarçados porque são o petisco preferido das onças. E estamos no seu território, por isso, nunca vimos desacompanhados para a mata durante a noite”.

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Onças? Apressei o passo, não sei se para lhes fugir ou se para encontrar um dos meus animais fetiche. Prosseguimos a caminhada sob um mar de folhas que atapetam o solo, como na música de Nélson Cavaquinho. “Quando eu piso em folhas secas, caídas de uma mangueira...”. Mas aqui as folhas não eram de mangueira, mas de samaúmas, bacuris, mognos, jatobás, entre outras, todas imponentes. Durante largo período, Tito falava da importância de cada ser vivo e parava a cada som estridente, de aves ou macacos, catalogando-os na hora enquanto eu só identificava um uníssono estridente sem qualquer separação entre eles.

Enquanto nos deliciávamos com aquele mundo fenomenal, Tito pediu silêncio. “Ouçam! É o uacari [nome científico: cacajão calvus]. Ele anda por aqui.” Momentos de exaltação assomaram os nossos corpos, não estivéssemos perto de um dos exemplares que só existe nesta região. Foi para preservar esta espécie de macaco que o biólogo Marcio Ayres propôs a criação da Reserva Mamirauá. O guia não demorou a encontrá-lo mas foi uma peleja que nós também o conseguíssemos. Alguns arranhões ao passar pela densa vegetação e lá estava ele, aliás, eles, porque era um grupo de três. Apesar da distância, eles mantiveram contacto ocular e pela primeira vez considerei a hipótese de ter descendido do uacari. São de pelo branco polar (também há de pelagem laranja-pálido, amarelado e acinzentado) e de cabeça vermelha, cujo rosto depilado lhes confere um aspecto humanóide. O uacari é de hábitos diurnos e vive sempre na parte mais alta das copas. “O facto de raramente descerem ao solo complica o seu avistamento”, explicou Tito.

Samaúma, curupira e botos

Ninguém faz remos melhor do que Roberto Dantas da Silva, 54 anos, e pastor da comunidade. “A árvore gitó (ou guarea) é a melhor mas a madeira da pinhareira é mais resistente à água” conta-me enquanto plaina as partes rugosas. “Segue-se, depois, a obra da igreja, reconstruída a cada quatro anos devido às cheias que transformam as nossas casas em ilhas flutuantes.” Aproveito a prosa para lhe perguntar sobre o curupira, o defensor das florestas e dos animais. “Sim, conheço. Tem cabelos cor do fogo e os pés virados para trás, e quando se sente observado corre tão rápido que desaparece, não adianta persegui-lo”, assegura Dantas. “É dado às travessuras e prega partidas a quem encontra na selva, desorientando sobretudo os caçadores e lenhadores.

E gosta de raptar crianças”, acrescenta, em tom de aviso, sobre uma lenda que garante ser real. “Ele existe mesmo e já raptou um menino de uma comunidade próxima daqui e que apareceu um ano depois, bem tratado”, garantiu o pastor. Uma outra, e que é familiar a todos os amazonenses, é o conto do boto-cor-de-rosa. Para Tito esta não passa, porém, de invenção. “As moças vão a festas no exterior, aparecem grávidas e para esconderem as besteiras que fizeram dizem que foram os botos cor-de-rosa que as enfeitiçaram depois de se terem transformado em homens bonitos, bem vestidos”.

“Tem o boto sonso
Que aparece nos festejos
Pra fazer as moças
Liberaram seus desejos”

(Caminhos do rio, Raízes Caboclas

Imaginação fecunda, tal como férteis são as faroleiras samaúmas, a quem tirara as medidas no percurso entre Tefé e a comunidade. Este segundo dia de caminhada, após uma etapa inicial de lancha por entre igarapés, levou-nos ao encontro de algumas árvores lendárias. “A samaúma é a maior árvore da Amazónia (e uma das maiores do planeta), podendo chegar aos 70 metros de altura”. Segundo Tito, aquela que víamos devia ter uns 50 metros. “Esta é uma árvore fundamental para os povos da floresta. Devido ao seu porte, serve de localização para quem navega pelos rios e também serve de comunicação para quem está perdido na mata”.

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Tito bateu com uma catana nas descomunais sapopemas, as raízes da árvore, eclodindo num eco estrondoso. “É o telemóvel dos índios”, gracejou, para acrescentar. “E dos curupiras, que usam a samaúma para se comunicar e fazerem bagunça durante a noite”. Na realidade, a geografia plana e a massa verde florestal não ajudam à localização, pelo que as samaúmas representam pontos de referência, os GPS da floresta. A copa da samaúma é tão alta e aberta que parece segurar o céu, mas está sujeita aos ventos, tempestades e ao seu próprio peso e por isso se equilibra em enormes tentáculos, as tais sapopemas, “que entram até 300 metros para dentro da floresta”. Finda a trilha interpretativa, na volta, e à medida que navegámos nas águas mansas do Japurá, umas nuvens negras fizeram uma assembleia num céu tingido de clarões incandescentes e logo despejaram a sua fúria sobre a terra. Novo espectáculo magnânimo de uma natureza que não receia exibir-se nesta Amazónia de superlativos.

"Nos caminhos desse rio,
muita história pra contar
Navegar nessa canoa
é ter o mundo pra se entranhar...”
(Caminhos do rio, Raízes Caboclas)

O mundo dos ribeirinhos

Já vai alto o terceiro dia e rapidamente passamos a ser parte integrante da comunidade Boca do Mamirauá. Conhecer a Amazónia era um sonho antigo, de menino. E nesse quadro mental, a floresta era assim mesmo: alagada, repleta de cipós, árvores gigantescas de troncos descomunais e habitat de cobras, onças, jacarés e piranhas devoradoras de homens. Já sabia que os índios foram remetidos a reservas e que o ambiente não é propício à vida humana. Mas desconhecia o modo de vida destes caboclos guerreiros.

Inserido num contexto de tempo e espaço por demais dilatados, vivendo entre uma floresta abissal e rios e lagos cujas águas muitas vezes os tornam insulares, este é um povo que parece estar sempre à espera, que vive num cenário imutável, muitas vezes cruel e dadivoso, tendo como estrada trilhas líquidas que passam ao largo. Um povo de vida difícil e distante, das beiras dos rios que servem de celeiros, de onde tira a sua sobrevivência diária e as suas histórias de vida e de morte, um povo quase esquecido no tempo e no espaço, apenas lembrado e chamado de ribeirinho. “Se ficar doente não temos embarcação que nos leve, os meus netos não têm escola, falta remédio e fica tudo difícil, no Verão é pior e demoramos três dias de viagens para comprar comida”, desabafou ‘seu’ Wanderley, numa comunidade vizinha, em Uarini.

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Os olhares reflectem a languidez do rio, a força das suas vidas é uma procura diária do peixe que passa rente às beiradas ou advém das frutas oferecidas pela floresta. Dependendo tão intimamente do rio, o transporte é a canoa que se aprende a manejar desde criança, ou a “voadeira” ou o barco regional possante no seu transporte, ou o barco simples e lento, que para muitos ribeirinhos serve de habitação. Vilarejos onde crianças e idosos reproduzem o cansaço de uma vida.

A solidão é um parceiro constante deste processo. “Passo uma semana a trabalhar nas castanhas ou em casa, à espera do marido”, desabafa dona Vera Lúcia. Solidão muitas vezes provocada pela busca da sobrevivência, mas compensada pelo nascimento de inúmeras crianças. Esquecidos ou lembrados, os ribeirinhos levam a sua vida, tendo os rios e floresta como seus parceiros. Aqui a vida pulsa, na flora na fauna a vida corre, escorrega no curso dos rios, é natureza, ciência, trabalho, consciência e pessoas que fazem parte desse mundo, com os seus sonhos, batalhas e alegrias. As suas vozes misturam-se para contar essa história e para construir um futuro novo, todos os dias. Foram três deliciosos e inesquecíveis dias, que apesar de corridos, nos encantaram e envolveram. Saímos de Mamirauá com uma nova (e intensa) relação com os sons da mata, com os cheiros da floresta e com a visão mais aguçada sobre a vida. Foi uma viagem às nossas origens mais viscerais: ao nosso próprio corpo e como ele se relaciona com o que nos cerca. Regressamos a casa mais próximo de nós mesmos e mais atentos aos contornos da realidade quotidiana. Há que voltar aonde se foi feliz.

"Em plena selva, Brasil ao vivo, vive uma gente
gente que é nossa, lida na roça,
gente valente, vence a corrente,
vence o rio bravo
e faz da selva, mundo vazio, cheio de amor...”
(Raízes Caboclas)

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