Uma pessoa com dois corpos

A criança absorvia o movimento exterior e o homem observava as manifestações da sua interioridade. “Pensar também é movimento”, pensou. “Não sou um homem mau”, tornou a pensar.

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Michal Parzuchowski/Unsplash

Um corpo pode magoar-se a si próprio, por exemplo, a mão direita pode ferir a mão esquerda. Ou seja, uma parte do corpo consegue ser a causa e a outra a consequência. São dois corpos na realidade — uma pessoa pode ter dois corpos.

O menino gritava a plenos pulmões. O homem levantou-se da cadeira onde adormecera sentado. Cheirava a urina; viu, então, a enorme rodela escura nas calças do miúdo. Agarrou-o em bloco e carregou-o até ao quarto-de-banho depositando-o na banheira vazia. Abriu a torneira da água quente. O miúdo berrava ainda mais alto, olhando-o, assustado. O homem não sabia o que fazer.

— Sabes tomar banho? — não queria ser ele a executar a tarefa. A criança não parou de berrar. O homem acertou a temperatura da água, regulando-a nos manípulos das torneiras, depois despiu-lhe a roupa e lavou-o com o chuveiro, atabalhoadamente, sem usar sabonete. A sua inexperiência levou-o a atirar água para os olhos da criança que chorou mais alto ainda. O homem achou melhor dar por terminada a tarefa, rodando rapidamente os manípulos da água. De seguida, enrolou-o numa grande toalha turca e lembrou-se de que não tinha roupa do miúdo consigo. Agarrou numa das suas camisolas de manga curta e vestiu-lha, fazendo-o parecer uma menina de vestido. O que mais podia fazer? A criança continuava a chorar, pensou que talvez tivesse fome. Calçou-lhe os ténis minúsculos e pegou-a novamente ao colo. Saíram.

— Tens fome? Vamos arranjar-te comida — questionou-se sobre o que comeriam pela manhã meninos com três anos de idade. Papas? Sandes? Bolos? O melhor seria ir até uma pastelaria. Afinal, o mais importante era fazer com que a criança se calasse. Teve de sair do quarto, mesmo correndo o risco de ter posto os outros hóspedes da pensão em alerta (era impossível ficar indiferente ao berreiro do menino), e podendo levantar suspeitas. A primeira manhã com a criança não auspiciava facilidade no relacionamento.

Após ter bebido um copo de leite morno e comido um pão com manteiga, o rapazinho sorriu para o homem, mostrando-se tranquilo. O homem tinha optado por dar-lhe um pequeno-almoço simples, acertando na escolha dos alimentos. Saíram da pastelaria. Caminhava pela rua, atento ao menino que trazia ao colo, e este atento a tudo o que lhe era exterior — o trânsito intenso, os transeuntes apressados, as cores dos prédios e as sombras das copas das árvores à beira da estrada, o cheiro a tubo de escape e a tabaco, aqui e acolá, pessoas a rir, pessoas macambúzias, pessoas ao telemóvel, aos pares, em grupos, sozinhas; uma diversidade enorme de coisas a acontecer em simultâneo. A criança absorvia o movimento exterior e o homem observava as manifestações da sua interioridade. “Pensar também é movimento”, pensou. “Não sou um homem mau”, tornou a pensar.

Caminhou com o rapaz ao colo até à porta do prédio da sua ex-mulher e mãe da criança. Subiram no elevador até ao 7.º andar. Pousou o menino no chão e tocou à campainha do apartamento. Voltou a entrar sozinho no elevador, o mais rápido que pôde. Ouviu a porta do apartamento abrir-se e o choro assustado do miúdo.

Ao chegar à pensão, sentou-se dentro da banheira ainda húmida do banho da criança, e com uma lâmina na mão cortou as veias dos pulsos.

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