Casa dos bicos

As casas que conhecemos guardam consigo uma certa luz que numa manhã entrou pela janela, escondem refúgios, têm memórias de cheiros, recordações, traços de nós inscritos em todos os recantos.

Foto
Álvaro Domingues

De todas as casas da Ribeira, nenhuma porém mais celebre, nem sequer tão celebre, como a “dos Bicos”, de que falarei agora; essa até entrou nos proloquios populares.

Quanto ao feitio extravagante da frontaria, ouriçada de bicos, ou antes de pyramides de quatro faces, essa singularidade deu motivo á lenda dos diamantes, quando é bem certo que, se chamavam ao prédio “casa dos diamantes”, é por assim designarem os mestres canteiros aquelle lavrado de cantaria. Ainda hoje em Ferrara ha um palácio, construído pelo artista Biagio Rossetti para Sigismundo d’Este, e acabado em 1567, todo revestido de pedras faceadas, que lhe dão o nome, por que é conhecido, de “palácio dos diamantes”. (…) Em pleno seculo XVII chamava-se a casa dos Bicos casa dos Diamantes, e morava ahi, certamente de aluguer, o 6º Conde de Odemira, D. Sancho de Noronha, raça quasi regia (1).

Qualquer casa, por muito ouriçada de bicos que estiver, é uma esquina da vida onde abrigamos formas de estar no mundo, de o habitarmos. Por isso se deve desconfiar de descrições simples e dos esquemas apressados. As casas que conhecemos guardam consigo uma certa luz que numa manhã entrou pela janela, escondem refúgios, têm memórias de cheiros, recordações, traços de nós inscritos em todos os recantos. Bachelard diz que qualquer casa é um corpo de sonhos e William Shakespeare também já havia dito que nós próprios somos feitos com a matéria dos nossos sonhos. Seria necessária uma escavação infinita para encontrar e reunir todo esse repositório; a arqueologia teria que encontrar procedimentos adaptados à substância delicada desses sonhos que se desfaz ou se esquiva perante a mais ínfima presença que a importune. Stephen Hawking, o físico prodigioso dos nossos tempos, usou para título de uma colectânea de textos sobre física sub-atómica, “Os sonhos de que as coisas (stuff) são feitas”.

Sobre casas, existe também um livro intitulado Casas de Sonhos (2), um cruzamento fértil de saberes para falar de arquitecturas sem arquitecto, vulgo, casas (ditas) de emigrantes. Trata-se de uma aproximação delicada e rigorosa sobre o que se pensa e se faz quando a nossa casa é o sonho da vida que se conseguiu resolver algures. Que longe que estamos da ligeireza de uma certa cultura parecida em seus juízos com a de muitos que habitam torres de marfim, e que desse subido estado — como se alguém lhes incumbisse a tarefa de serem guardiões do gosto — disparam fel e excrementos sobre tudo aquilo que ofenda o refinadíssimo apuro dos seus sofisticados conhecimentos, cultura de berço, razão esclarecida, superioridade intelectual, vol-au-vent e neurónio excitado até à faísca.

Admitamos então essas dimensões oníricas da realidade. Para além dessas, dizem os ditos comuns que Quem fez a casa na praça / A muito se aventurou / Uns dizem que é pequena / Outros, que de alta passou. Quer isto dizer que sendo as casas tão visíveis como altos castelos, não escapam a um dos prazeres maiores dos humanos que é o de se avaliarem uns aos outros por seja lá o que for. Por isso ficam uns ouriçados de bicos com o desgosto que a barbárie lhes causa — os outros, os terrivelmente banais, de mau gosto, destravados, vulgares —, por isso embicam e azedam. Em tempos de normas sociais bastante heterodoxas, soltam-se em fúrias os juízos normativos, organizados no fogo cruzado de quem classifica quem, como, e a propósito de quê. O ruído é ensurdecedor.

Entre o Brás de Albuquerque e o Sigismundo d’Este, para além do gosto comum pelas casas com bicos, está o poder, coisa bicuda de uma raça quase régia. A genealogia não bastava. Era necessário o aparato, a distinção, os sinais exteriores. A sobriedade, a discrição e as subtilezas ficariam para outra ocasião. Quando viessem as academias e os salões, logo se trataria de padronizar o bom e o mau gosto, a alta e a baixa cultura; depois educava-se o povo para que percebesse a sua condição dentro da pirâmide social a contar da base.

Em primeiro plano, um muro baixo em granito rematado por um friso de blocos de cimento; ao meio, uma porta de remate triangular, protegida por um coberto de geometria semelhante. No primeiro patamar, um alinhamento de árvores de fruto; atrás, um segundo muro de pedra. No plano seguinte, um patamar em forma de pirâmide truncada, revestido de seixos brancos. No cimo, a casa; ao centro, dois corpos sobrepostos recuados; lateralmente, em disposição simétrica, dois volumes avançados com coberturas de duas águas bastante inclinadas. As portas e fenestrações dispõem-se em falsa simetria: da esquerda para a direita, o rectângulo maior está antes do menor. O vértice do portão da entrada e o do respectivo coberto, a longa escadaria de acesso à casa que enfatiza o movimento ascensional, e o painel solar térmico sobre a cobertura, marcam o eixo central da composição. O descentramento do poste da electricidade foi resolvido pelo ângulo da fotografia, alinhando-o pelo bico do triângulo lateral direito da casa. O céu está ligeiramente nevoado e a calceta do passeio, como nova.

Não se sabe se existem prolóquios populares sobre este gosto diverso.

1. Júlio de Castilho (1893), A Ribeira de Lisboa : descripção histórica da margem do Tejo desde a Madre de Deus até Santos-o-Velho, Lisboa: Imp. Nacional, pp.185/6.

2. Carolina Leite; Isabel Raposo; Roselyne Villanova (1995), Casas de Sonhos. Lisboa : Edições Salamandra.

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