Vasco Temudo, o actor português que é figurante em A Guerra dos Tronos

“Eu sei que não fui uma Khaleesi ou um Jon Snow, mas aprendi imensa coisa”, reconhece o actor português, envolto no véu contratual de secretismo de uma das séries mais populares do mundo. E conta ao P3 a euforia de passar para o outro lado do ecrã, num mar de cenários de fundo verde, sem saber o que iria gravar até ao momento de o fazer.

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NUNO FERREIRA SANTOS

Era uma manhã de finais de Abril de 2018 e Vasco Temudo estava a trabalhar numa loja de roupa na capital portuguesa quando recebeu uma chamada da equipa de produção da série A Guerra dos Tronos, a pedir-lhe que espreitasse o e-mail. “Pensei que era a brincar”, conta, até ter reparado que a chamada era internacional; já se tinha esquecido do currículo que enviara três anos antes, quando as gravações andavam perto, em Espanha. Viu então o e-mail em que lhe perguntavam qual a sua disponibilidade para estar no estúdio e respondeu: “Toda.” Uns minutos depois ligaram-lhe novamente: “Então consegues estar cá amanhã às 5h?”. “Cá” era na Irlanda.

Foi uma correria, tudo em menos de 24 horas. Deixaram-no sair do trabalho mais cedo, comprou bilhetes de avião a partir de Faro, foi de Lisboa para lá de autocarro, reservou um quarto num hostel pelo caminho e com sorte conseguiu apanhar o voo. Chegou de madrugada a Belfast, na Irlanda do Norte, e às 5h estava nos estúdios Titanic, que têm mais de nove mil metros quadrados e são dos maiores da Europa, pronto para gravar cenas para a oitava e derradeira temporada da série.

“Eu sei que não fui uma Khaleesi ou um Jon Snow, mas aprendi imensa coisa”, reconhece o actor, em conversa com o P3. Vasco Temudo, que tem 26 anos e trabalha sobretudo em teatro, foi chamado para fazer de soldado Unsullied ("Imaculados”, em português, um grupo de soldados-escravos no universo ficcional) durante dois dias de gravação. O ritmo era intenso: o dia de trabalho começava às 5h e acabava às 18h — e filmavam em catadupa. “Sempre a gravar, gravar, gravar. Eram pavilhões enormes, tantos green screens, tanta gente, tanta produção, tantos assistentes. Eu parecia uma criança de cinco anos a ver a grandiosidade de tudo”, brinca.

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Uma cena com os soldados Unsullied numa das temporadas anteriores DR

No primeiro dia, raparam-lhe o cabelo: “Até pagam mais por isso, quando se muda a imagem.” Depois, há que vestir — uma indumentária de soldado aguarda cada figurante, feita consoante as medidas que lhes tinham sido pedidas antes. Seguem para uma sala forrada de plásticos, onde se faz a caracterização. “Para aquela cena em específico, borrifaram sangue e terra no corpo e na cara e ficámos à espera que todos estivessem prontos.” E, como o estúdio é grande, os Unsullied seguiram de autocarro para o local de gravação.

Foram horas em pé, com as lanças pesadas na mão, num cenário de batalha coreografado ao milímetro. “No mesmo espaço de gravação, num dia, devo ter gravado cenas que aparecerão em três episódios, mas eles nunca nos diziam para que episódio era”, comenta, sempre com cautela para não revelar informações sobre o enredo.

Vasco Temudo gravou situações de batalha em exterior, com uma grande parede verde por trás, “da altura de um prédio de cinco andares”, com sinais laranja espalhados pelo cenário que servem de referência para a imagem ser depois manipulada digitalmente. “Na série parecem ser milhares de soldados, mas a gravar éramos só cerca de cem, pensava que seríamos mais. Se calhar, depois, vou ser multiplicado, vamos todos ser multiplicados. É tudo assim.”

Natural de São João da Madeira e agora a viver em Lisboa, Temudo já era fã daquela que é uma das séries mais populares do mundo – que o prendeu sobretudo pela imprevisibilidade e impiedade do enredo. “Estava habituado a estar no sofá, atrás da televisão e, de repente, estava do outro lado”, resume. “E, do nada, estava ali todo apetrechado, todo maquilhado, cheio de sangue e terra”, absorto numa produção mundial de grande escala. A experiência não foi das mais exigentes que já fez, admite, mas tinha um peso associado muito maior.

Segredos mais valiosos do que prata ou safira

A Guerra dos Tronos é um reino em que se luta para que os segredos sejam bem guardados até à estreia da oitava temporada, a 14 de Abril. Vasco assinou páginas e páginas de acordos de confidencialidade e recorda o secretismo exacerbado que presenciou nos estúdios e o cuidado para que não haja fugas de informação.

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Nuno Ferreira Santos

Para entrar nos estúdios, a primeira coisa que fazem no controlo de segurança é tapar as câmaras frontal e traseira do telemóvel com uma fita-cola transparente que diz “não remover”. “Engraçado é que os assistentes de produção também tinham essa fita-cola, os realizadores também, toda a equipa de alto a baixo, porque não pode vazar informação, muito menos visual”, conta Vasco. “E se alguém tirar o telemóvel, eles ficam logo alerta.” À saída, teve de mostrar novamente o telemóvel e só quando tirou a fita adesiva é que se apercebeu que a fita passava de transparente a vermelha quando era levantada, para identificar quem pudesse ter tirado fotografias aos cenários ou aos actores.

Vasco Temudo diz que não contracenou com nenhum dos protagonistas ou personagens secundárias e acredita que o centro daquela acção – incluindo a personagem de Daenerys Targaryen ou os dragões – possa depois ser adicionado digitalmente às cenas que gravou. “Talvez se eu ouvisse falas já teria de assinar outro contrato de confidencialidade”, calcula.

Não teve acesso a nenhum guião. “Nada, era só informações na hora: ‘Agora, olham para aqui, vão caminhar para ali’, eram informações muito limitadas.” Optando por um discurso quase críptico quando fala do enredo, refere que não sabe como acaba a série, mas que ia tentando “montar o puzzle” na sua cabeça, juntando aquilo que ia vendo àquilo que já sabia das temporadas anteriores. 

Por entre as câmaras que voavam por cima da sua cabeça e o regozijo de reconhecer pedaços do cenário, ficou surpreendido “com a monstruosidade da organização”: “Parecem formiguinhas, sabem todas para onde ir e o que fazer. Querem fazer as coisas direitinhas, querem boas maquilhadoras, querem bons actores, bons figurantes — e se forem actores, melhor ainda porque estão por dentro das coisas.”

Um mercado ingrato

Antes de decidir viver em Lisboa por motivos profissionais, Vasco Temudo andou pelo Porto e por Aveiro. Acabou o curso de intérprete profissional em 2012 e desde então tem feito teatro experimental, teatro de marionetas, musicais no gelo, curtas-metragens e algumas breves participações em televisão, incluindo dobragens.

“Até então concilio o trabalho da representação com trabalhos mais pequenos, além da loja de roupa também já trabalhei num call center. O que gera muitas dores de cabeça: uma pessoa é obrigada a fazer algo que não gosta, que não quer, só para pagar a renda”, diz Vasco, reconhecendo que não teria conseguido ir a Belfast de imprevisto sem a ajuda dos pais. “Eu nem queria acreditar e era uma oportunidade que poderia ter escapado facilmente, bastaria não me terem deixado sair do trabalho mais cedo ou não ter voo.”

Na Irlanda, admirou-se com o profissionalismo e atenção com que era tratado. “Dos trabalhos de figuração que fiz em Portugal parece que há uma mentalidade de ‘é só mais um, faz’. Ali dão importância.” Nos estúdios não se cruzou com mais nenhum português. “Quase toda a gente era dos arredores, ali da Irlanda, e quando ouviam o meu sotaque perguntavam-me de onde era e até estranhavam que eu tivesse ido de Portugal para lá.”

Para o actor, o mercado da representação é difícil, ingrato, e “há muita gente igual a toda a gente”. Causa ansiedade, incerteza, num mês pode ter trabalho, mas no seguinte já não. “Gosto muito do que faço, não me imaginava a fazer outra coisa, mas quando começo a pensar a longo prazo, e mesmo a curto… E se até temos uma Eunice Muñoz que diz que tem de trabalhar para sobreviver, o que acontece aos outros todos?”

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