O caos não é um abismo, é uma escada – A Guerra dos Tronos regressa agora

“O primeiro blockbuster televisivo global” pôs mais de um milhão de pessoas a verem o gelo derreter na Internet – e as eleições coreanas a voarem em dragões. Como se faz e para onde vai nesta sétima temporada, que se estreia esta segunda feira em Portugal?

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Jaime e Cersei Lannister HBO
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Daenerys Targaryen HBO
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Petyr Baelish e Sansa Stark HBO
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Meera Reed e Bran Stark HBO
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Davos Seaworth HBO
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Lyanna Mormont HBO
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Samwell Tarly e Goiva HBO
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Sandor Clegane, ou O Cão HBO
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Tyrion Lannister HBO
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Missandei, Varys, Verme Cinzento, Tyrion e Daenerys HBO
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Tormund Giantsbane e Brienne de Tarth HBO

O fim está próximo, e significa guerra. O modo actual é “hipérbole” – o regresso de A Guerra dos Tronos é aguardado pelas suas dezenas de milhões de espectadores na certeza de que tudo será grande, importante, solene e numeroso. Não são só as imagens já reveladas, anunciando o combate iminente entre Lannisters, Targaryens e Starks. São eleições reais que usam imagens da série, países que a proíbem aos seus soldados, e é sobretudo o destaque que, numa paisagem saturada como nunca de televisão e mais televisão, a série só vê crescer. Aí vêm dragões, mas vêm de onde? E como se faz esta televisão blockbuster?

O corvo branco chegou e com ele a confirmação de há dez livros e 20 anos – o Inverno está aí, e com ele os zombies gelados num mundo distraído com lutas intestinas, com um trono na posse da assassina de massas Cersei Lannister e pretendentes a caminho como Daenerys Targaryen e Jon Snow, vilões a desabrochar como Euron Greyjoy, em tese peões em movimento num jogo cheio de segredos e figuras nas sombras. Uma fala famosa da série (e que é seu exclusivo, não provindo dos livros de George R.R. Martin que lhe dão origem) descreve o reino em torno do qual gira A Guerra dos Tronos assim: “É uma história que concordámos contar uns aos outros, vezes sem conta, até esquecermos que é uma mentira.” Hoje, A Guerra dos Tronos é uma história global, uma inusual narrativa colectiva num mundo individualizado que atravessa fronteiras e reflecte o que é a televisão actual.

Amanda Lotz, investigadora no Peabody Media Center e professora de Estudos dos Média na Universidade do Michigan, defende mesmo que A Guerra dos Tronos é “o primeiro blockbuster televisivo global”. Exibida em canais da televisão por subscrição, povoada por inúmeras personagens em disputa pelo protagonismo, criticada pelo uso excessivo da violação como arma, temperada com dragões, videntes e zombies, a série bateu recordes na HBO que a produz, e na televisão paga em países como o Reino Unido, e é a mais pirateada de sempre: todos os suportes legais combinados, nos EUA foi vista em 2016 por 25 milhões de pessoas, e é maior e mais cara do que The Walking Dead, mais vista do que muitos jogos de futebol e do que comédias populares como A Teoria do Big Bang. Convenceu mais de um milhão de fãs a, literalmente, verem gelo a derreter durante minutos num ecrã para saberem a data de estreia da nova temporada – 16 de Julho de 2017 para os americanos, segunda-feira 17 de Julho para os espectadores do SyFy em Portugal. Os músicos querem participações especiais, os fãs fizeram a sua primeira convenção, e o que era originalmente uma saga literária tornou-se um franchise com séries spin-off, merchandising omnipresente e muita atenção dos média.

Como é que chegámos aqui? Viemos da era de ouro de Os Sopranos, Mad Men e Breaking Bad e até está a bordo alguém de The Wire (as séries têm em comum um dos seus actores, Aiden Gillen, agora como Petyr Baelish) e muita da sua essência. Poucos anos antes de A Guerra dos Tronos chegar à TV, fomos apresentados aos infames Difficult Men, que titularam o livro de Brett Martin sobre a melhor TV americana (final dos anos 1990 e início do século XXI), e que incluem personagens tão más que são boas e homens tão bons que se tornam mesmo maus. A promoção muito inicial de A Guerra dos Tronos era mesmo “Os Sopranos na Terra Média”.

No fundo, incorporaram os 50 tons de cinzento que pintaram mais uma era de ouro da televisão e que abriram caminho para o pico televisivo descrito há três anos por John Landgraff, presidente do canal FX, e que caracteriza o cenário actual: centenas de séries made in América, milhares de personagens, os nichos previstos pelos teóricos da televisão do século XX a pulverizarem-se em catadupa, espectadores novos, diferentes, e antigos, mudados. A influência da sua narrativa impiedosa em torno do grande jogo do poder também é reconhecida por quem faz ficção televisiva em muitas das séries que vieram a seguir e outras que ainda estão para vir.

Uma conversa global

Paul Ghirardani está neste momento algures no mundo a filmar a oitava temporada. É o director de arte da série e ainda se surpreende como espectador. “Só vejo o resultado num domingo à noite quando me sento no sofá para ver um episódio. E penso ‘fizemos mesmo isto?’”, contou ao PÚBLICO em Maio em Lisboa, onde esteve para uma conferência da Trienal de Arquitectura. Recorda um episódio pungente dessa temporada, em que morre (mais) uma personagem. “Tive de conter as lágrimas. E eu estava lá quando estavam a filmar! Isso é a força da escrita e é o que torna a série tão excitante”, defende.

Justifica o apelo de A Guerra dos Tronos com o “o nível de caracterização” das personagens, “a forma como a história se desenvolve” e o “tanto detalhe” que faz com que haja “muito para ver e absorver”. Tem vestida uma t-shirt da equipa de duplos alocada aos Targaryen. Nas costas lê-se “mud, blood and thuds”, qualquer coisa como “lama, sangue e baques” – “resume bem a coisa, é um dia típico” nas filmagens, sorri.

A história é um cruzamento entre os livros que lhe dão origem, As Crónicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, e o fim que a série lhes está a dar – desde a sexta temporada, muito do que foi filmado é já original e alternativo em relação aos livros que o autor tarda em terminar. Os produtores e escritores Daniel Weiss e David Benioff agora “sentem que isto agora é verdadeiramente deles”, descreve à Time Nicolaj Coster-Waldau, o actor que interpreta Jaime Lannister. Há “intrigas secundárias que são cozinhadas durante muito tempo e demoram anos a explodir”, acrescenta o colunista Rob Sheffield na Rolling Stone, e “as histórias intricadas e surpreendentes inspiraram dissecação instantânea nas redes sociais”, defende Amanda Lotz, criando a necessidade de visionamento colectivo como fuga aos spoilers. Há um ano, alguns dos actores diziam ao PÚBLICO como a sua intemporalidade e o orçamento ajudam ao fenómeno.

Se para Sheffield a série “inventou todo um novo estilo de contar histórias televisivas”, para Amanda Lotz ela também fez um percurso singular. A história da televisão pôs o mundo a consumir cada vez mais produtos americanos, mas até há pouco tempo essa relação era transmitida em diferido. A história da Internet fez com que passasse a ser em directo. Agora há uma conversa global sobre estas séries, “uma cultura de média partilhada que transcende fronteiras nacionais”, diz a académica num texto no site The Conversation. E é esta série que “está na dianteira deste fenómeno”.

Quando se estreou, em 2011, ainda não era assim, mas em 2015 A Guerra dos Tronos tornava-se um sucesso tal que a HBO a espalhou por 170 países em simultâneo (ou quase) com os EUA, numa luta contra a pirataria e os spoilers. Era algo que não era novo (o episódio final de Perdidos foi transmitido em simultâneo em grande parte do mundo, séries como The Walking Dead são actualmente simultâneos quase garantidos) mas que foi especialmente fácil para o canal, porque é seu produtor e distribuidor, nota Lotz. “A HBO mostrou que os blockbusters televisivos globais são agora possíveis.” O efeito de appointment viewing em torno de A Guerra dos Tronos, o visionamento simultâneo e agregador de milhões, parece porém algo de um tempo passado – "é o último vestígio da monocultura” televisiva, do mundo com poucos canais e o ocasional videogravador, defende a crítica Alison Herman no The Ringer.

“Escapismo simpático”

Em Maio, o vencedor das presidenciais na Coreia do Sul foi anunciado no canal de notícias SBS com imagens dos candidatos em luta pelo Trono de Ferro, montados em dragões ou como timoneiros de frotas invasoras no Mar Estreito, justapostos a sondagens e gráficos de barras. Em 2014, o Exército turco terá mandado banir a série nas suas academias, e nesse mesmo ano, quando vieram a público gravações que indiciavam a corrupção do primeiro-ministro, foram partilhados excertos de séries como Breaking Bad ou A Guerra dos Tronos que referenciavam o caso. Em 2016, o então Presidente dos EUA Barack Obama, um fã, tinha direito a visionamento antecipado na Casa Branca.

A série que nasceu da frustração de Martin enquanto argumentista televisivo e da vontade de fazer um épico de fantasia “impossível de filmar” surgiu quando a crise financeira de 2008 mostrava os seus efeitos mais perniciosos. “Agora, Westeros pode parecer um escapismo simpático face ao que vemos nas notícias, porque a política do mundo tornou-se muito, muito negra”, disse em Janeiro Kit Harington, ou Jon Snow agora rei do Norte, à Time.  

Superlativa na complexidade narrativa (na difusão espacial e no número de personagens problemáticas, boas e más, heróicas e vilanescas, traiçoeiras e leais), a série afinal foi filmável, e de que maneira. A sua dimensão orçamental é de pelo menos dez milhões por episódio e a sua ambição é hollywoodesca nas cenas de batalha, nos planos abertos para um mar coberto de vasos de guerra exóticos, nos efeitos de voo de um dragão escamado. E os termos agora usados para a descrever – "blockbuster”, “épico” – são mais próximos do cinema do que da TV. “Antigamente, este tipo de escala só era tentado por miniséries blockbuster como The Winds of War” (1983), defende Rob Sheffield na Rolling Stone, ou mesmo Irmãos de Armas (2001), “mas A Guerra dos Tronos mantém este ritmo há 60 episódios”. Com temporadas menos conseguidas ou efeitos nem sempre exemplares, e deixando obviamente muitos milhões de espectadores de fora, continua a mover mundos e fundos.

Paul Ghirardani, detentor de cinco Emmys pelo seu trabalho na série mais nomeada de sempre, tem noção, como poucos, da amplitude deste mundo que desenha há anos. A revista National Geographic “é um recurso espantoso” na base da sua inspiração para construir um Norte gelado, uma capital soalheira, um Sul tórrido e os vários ocidentes extravagantes. Explica ao PÚBLICO um pouco dos bastidores da gigantesca produção. “Nunca sei o que vai acontecer até receber o outline. Estamos basicamente nas mãos de [David] Benioff e [Dan] Weiss e dos escritores. Isso dá-nos uma ideia do tamanho, da abrangência e da escala. E depois começam a dar-nos guiões, não necessariamente por ordem – e isso normalmente manda o outline janela fora, porque as coisas mudam.”

Agora que chega a sétima e penúltima temporada, só pode dizer que “vamos a sítios onde ainda não estivemos, o que será divertido, e vamos a sítios onde já estivemos”. Dan Weiss explica sem mais detalhes que “há uma série de reuniões e primeiros encontros”, e Harington avança à Time que “este ano há uma enorme mudança, sísmica, em que tudo o que Jon Snow soube durante anos, de repente...”. A liberdade dos dois autores é tal que a duração dos episódios oscila entre um “que terá 90 minutos e outro que será o mais curto [da série], de 50 minutos”, como explicou Benioff à Entertainment Weekly. Serão apenas sete episódios e não os dez costumeiros, e na última temporada só serão feitos seis. “Nunca uma série foi tão brilhante na sua maldade”, enleva-se Sheffield na Rolling Stone. “Nunca mais veremos nada assim.”

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