Esta mesa está posta para três rainhas

Foi assim há mais de 100 anos. As coisas podem não estar exactamente iguais, mas andarão lá muito perto. O Palácio Nacional de Sintra recriou a mesa do almoço que Maria Pia ofereceu à rainha Alexandra do Reino Unido. Três investigadores falam-nos dos menus da casa real portuguesa no tempo desta anfitriã italiana que não dispensava trufas nem canja de galinha.

Aspecto da mesa da exposição <i>A Royal Lunch</i>, na Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra
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Aspecto da mesa da exposição A Royal Lunch, na Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra Luís Pavão/Cortesia da Parques de Sintra - Monte da Lua
Aspecto da mesa da exposição <i>A Royal Lunch</i>, na Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra
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Aspecto da mesa da exposição A Royal Lunch, na Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra Luís Pavão/Cortesia da Parques de Sintra - Monte da Lua
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Aspecto da mesa da exposição A Royal Lunch, na Sala das Pegas do Palácio Nacional de Sintra Luís Pavão/Cortesia da Parques de Sintra - Monte da Lua
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As rainhas Alexandra, D. Amélia e D. Maria Pia no pátio central do Paço de Sintra, depois do almoço Fotografia de A. Salgado para a Illustração Portuguesa/Cortesia da DGPC /Palácio Nacional da Ajuda

D. Maria Pia e o marido, D. Luís I, gostavam muito de canja e é por isso que ela todos os dias ia à mesa na Ajuda, onde também se servia muitas vezes sopa juliana. É, aliás, com a receita deste caldo feito de legumes cortados em tiras regulares e muito finas que Guida Cândido abre o capítulo que dedica às escolhas gastronómicas da princesa piemontesa que foi rainha de Portugal no seu livro Comer como uma Rainha (D. Quixote, 2018).

Sardinhas assadas, maionese de salmão, macarrão gratinado, espinafres com creme, peru assado com agriões, leite-creme e chocolate quente são algumas das receitas que publica associadas a esta mulher que adorava trufas e não dispensava um arroz de galinha. Uma rainha que casou quando ainda não tinha feito 15 anos e que fez do Palácio Nacional da Ajuda a sua casa, moldando-o às necessidades de conforto e requinte de um quotidiano que concilia os imperativos de representação do Estado com as exigências de intimidade da vida familiar.

“A mesa de D. Maria Pia [1847-1911] e de D. Luís [1838-1889] é absolutamente ecléctica e tem a particularidade de combinar a finesse – é muito evidente a influência francesa, que é a cozinha que serve de matriz em todas as cortes europeias – com propostas menos requintadas. São eles que introduzem a sardinha assada na casa real”, diz a investigadora da história da alimentação que neste volume sobre o receituário real do século XVI ao século XX dá a conhecer a mesa de cinco rainhas de Portugal, mostrando como se preparavam e o que nelas era servido, começando com Catarina de Áustria (1507-1578), mulher de D. João III, e terminando, precisamente, com Maria Pia.

Neste volume, que servirá de base a uma série de jantares temáticos feitos em parceria com as Pousadas de Portugal (o primeiro é dia 15 de Setembro, na de Condeixa-Coimbra), a investigadora selecciona vários pratos por cabeça coroada, faz um brevíssimo enquadramento de cada um, dá a receita para que o leitor não se coíba de tentar replicá-los em casa e explica, entre outras coisas, de onde vêm as expressões que ainda hoje usamos de “pôr a mesa” e “levantar a mesa” (como a sala de jantar só foi introduzida no século XVIII, até então as mesas eram armadas em espaços multifuncionais e desmontadas no final da refeição).

No século XIX, no Palácio Nacional de Sintra, que era a residência de recreio de D. Maria Pia e do marido, já havia sala de jantar. É neste paço medieval que até 7 de Outubro a mesa está posta como num almoço que ali se realizou a 24 de Março 1905 em honra da rainha Alexandra do Reino Unido que visitou Portugal numa altura em que as relações entre os dois países ainda se ressentiam das disputas pelo controle dos territórios entre as colónias de Angola e Moçambique, um corredor que ligava os oceanos Atlântico e Índico, formalizadas no chamado Mapa cor-de-rosa e no Ultimato britânico de 1890.

Os portugueses perderam esta disputa e é por isso que esta passagem de Alexandra por Lisboa e Sintra é tratada como uma visita de Estado de importância diplomática, “politicamente sensível”, explica Fernando Montesinos, museólogo e historiador que é o comissário desta exposição, A Royal Lunch, integrada na iniciativa A Place at the Royal Table com que a Associação de Residências Reais Europeias se associa ao tema do Ano Europeu do Património Cultural.

À mesa na Sala das Pegas sentaram-se o rei, D. Carlos I (1863-1908), e três rainhas: a sua mãe, Maria Pia, a sua mulher, Amélia de Orleães, e a convidada britânica, mulher de Eduardo VII, que nessa altura não pôde ou não quis retribuir a visita que os reis portugueses tinham feito ao Reino Unido no ano anterior.

Sempre perfeccionista

Recriar este almoço, cujo menu e planos de mesa já se conheciam, implicou uma investigação aprofundada em arquivos e jornais da época, diz Montesinos, um dos conservadores deste monumento que hoje é gerido pela Parques de Sintra – Monte da Lua. Em parceria com o Palácio da Ajuda, e em particular com a colaboração da responsável pelas colecções de porcelana e cerâmica, Cristina Neiva Correia, foi possível identificar os serviços usados (pratos, copos, talheres, pratas) e até as flores que marcavam os arranjos (sobretudo violetas e camélias, as primeiras ainda hoje intensamente cultivadas nos jardins do Castelo de Windsor, as segundas características da paisagem de Sintra).

Maria Pia, “perfeccionista como sempre”, não deixou nada ao acaso, diz Montesinos. “D. Carlos é o anfitrião – é ele quem faz o brinde do almoço –, mas acaba por dar destaque à mãe porque está em sua casa. E o Palácio da Vila é um dos sítios preferidos de Maria Pia, que o fotografa muito. Ali há uma descontracção própria de uma casa de recreio, que também se terá sentido no espírito deste almoço formal em que a rainha-mãe não deixa de mostrar a riqueza da casa real e o seu requinte a receber.”

Cristina Neiva Correia concorda com a interpretação que Montesinos faz do papel de Maria Pia: “Como escreve [a historiadora] Maria Antónia Lopes, ela teve um papel diplomático bastante importante que ainda não foi formalmente reconhecido”. Não se metia directamente na política, mas era uma anfitriã perfeita, diz a conservadora da Ajuda, que gostaria de ver renovado o olhar sobre esta rainha que tão depressa é louvada pelo seu trabalho de assistência aos mais pobres, como criticada por ter gasto de mais.

Peças e talheres em prata das baixelas Veyrat, Odiot e até Germain requisitadas à Ajuda, copos de cristal da Companhia di Venezia e Murano e um serviço de porcelana de Limoges da marca Haviland (companhia americana com fábrica em França que trabalhava para o mercado de luxo) marcaram a mesa onde foi servido um menu de cariz francês que incluía canapé de atum, consomé chancelière, salmão “à genovesa”, mousse de foie-gras, tornedós “à bordalesa”, espargos fritos com molho tártaro e pudim “à escocesa”.

O cardápio, escreve o gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes no e-book dedicado a esta exposição do Palácio da Vila, cujo lançamento está previsto para Setembro, “revela um sentido de modernidade” e está “bem estruturado”.

Tudo neste almoço que terá durado duas horas foi feito com muito cuidado. Do Palácio da Vila, Alexandra do Reino Unido foi de coche para o da Pena, a casa de D. Carlos e de D. Amélia em Sintra. Mas antes teve ainda tempo de pousar para os fotógrafos, algo fundamental para a propaganda da casa real.

“É preciso ver que o Ultimato britânico tinha enfraquecido muito a imagem do rei e que na época a imprensa republicana era fortíssima. Os jornais escreviam muitas vezes que a melhor coisa que podia acontecer a Portugal era a família real morrer [D. Carlos e o príncipe herdeiro acabam assassinados três anos mais tarde, em Fevereiro de 1908]. Este almoço tem uma função interna e externa”, acrescenta Montesinos. “Faz parte do jogo da diplomacia. E na política externa a sedução é uma das principais armas.”

A rainha sofisticada

Maria Pia casa com D. Luís em 1862, perto de completar 15 anos, e fica viúva muito cedo (aos 42). Filha do rei de Itália, é uma mulher educada na tradição, culta, amante das artes e habituada ao luxo das grandes cortes europeias.

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D. Maria Pia com o rei D. Luís I, seu marido, em 1862, ano do seu casamento Cortesia: DGPC

Diz Neiva Correia que o que hoje vemos nas salas da Ajuda, onde viveu quase 50 anos, e o que o palácio servia à mesa no seu tempo, acrescenta a investigadora Guida Cândido, são reflexo da sua formação, mas também da sua personalidade curiosa e atenta ao que se passa à sua volta.

Talvez por isso, diz a autora de Comer como uma Rainha, haja nela uma combinação de tradição e modernidade. “A coexistência de pratos de requinte e de outros menos sofisticados na sua mesa garante a aproximação do palácio a um quotidiano mais ligeiro.” Até então, explica Cândido, a mesa real procurava sobretudo o exótico, a diferenciação, procurava que a “comida espectáculo” fosse sinónimo de poder (o “espectáculo” ia ao extremo de voltar a cobrir as aves de penas depois de cozinhadas).

“D. Maria Pia era uma mulher cheia de mundo que gostava do cerimonial da mesa e nunca pedia para repetir. Embora tenha introduzido pratos mais comuns, como as sardinhas assadas e as migas, a sua mesa nunca foi simples. Nem quando fazia piqueniques dispensava baixelas e talheres de prata.”

Nas reservas do palácio da Ajuda, onde estão 16 mil peças de porcelana de várias origens e fabricantes, há vários serviços encomendados por ela. Nelas se encontram, por exemplo, os pintados à mão da fábrica alemã Meissen e os franceses de Limoges; nela se encontram outros mais baratos, ainda que de luxo, da americana Haviland (também feitos em Limoges).

Para “reabilitar” a imagem de despesista de Maria Pia é preciso atender ao contexto em que vive, com a República à porta, defende a conservadora de cerâmica da Ajuda. “Sabemos que é uma mulher de gostos sofisticados, mas não acredito que tenha tido o papel ruinoso que lhe atribuem. É verdade que havia sempre muitas contas por saldar, mas mais por decisão de quem lhe tratava das finanças, que faseava os pagamentos de quase tudo o que ela comprava e com isso a fazia viver a crédito.”

Lembra Neiva Correia que, à época, as dotações do Estado para a casa real tinham sido já muito reduzidas e que Maria Pia chega a hipotecar à Casa Burnay e ao Banco de Portugal centenas de jóias e pratas, muitas delas presentes pessoais, para fazer face às despesas. Entre estas peças está o centro de mesa da Baixela Veyrat, prenda de casamento do pai, o rei Victor Emanuel II, que hoje está na sala de jantar da Ajuda, concentrando atenções entre os pratos do serviço Astragale e os delicados copos de cristal Baccarat, com montagens em prata e as armas reais de Portugal em ouro.

“D. Antónia, a irmã de D. Luís, era a mais viperina em relação aos gastos da cunhada. Chegou a sugerir ao irmão que a devolvesse”, diz a conservadora junto ao centro de mesa que era usado para flores, doces e pequenos frutos, que o Estado comprou num leilão em 2014, por quase 50 mil euros.

É verdade que Maria Pia, reconhece Neiva Correia, gostava de ir às compras, sobretudo em Paris, onde se instalava, por regra, no Hotel Liverpool. Das suas agendas de bolso carregadas de anotações a lápis, feitas numa letra difícil de ler, constam listas que incluem peças de vestuário, gatos, tendas para piquenique e até cavalos.

“Ela é uma mulher com preocupações sociais e muito amada na época devido ao trabalho que faz junto dos mais pobres [chamam-lhe O Anjo da Caridade, por exemplo], mas é também uma rainha educada na tradição e no luxo.”

Pasta e pão com manteiga

À sua mesa os menus são ditados, em parte, pelos alimentos disponíveis a cada época. Se é tempo de lampreia come-se lampreia, se é de salmão e de rodovalho, adapta-se o cardápio.

É claro que as origens italianas de Maria Pia, nascida em Turim, também os influenciam e é por isso que há neles vários pratos de pasta — as massas são introduzidas em Portugal ainda no século XVIII — e outros com designações que lhe são próximas geograficamente, como “à piemontesa”, “à italiana” ou “à genovesa”.

O chocolate quente era, por hábito, servido à hora da ceia, embora o chá e o café continuassem a dominar as preferências. Esta bebida, cujo consumo se tornou popular nas cortes europeias do final do século XVII, preparava-se, tal como hoje, com água ou leite e está no centro de uma das exposições que agora se podem ver no Palácio Nacional de Queluz, onde em Novembro decorrerá o colóquio Um Lugar à Mesa Real, dedicado aos hábitos alimentares da corte e aos protocolos que cada refeição exigia.

Escreve Guida Cândido no seu livro que, no tempo de D. Maria Pia, os menus, sempre escritos em francês, são ricos em sobremesas — tartelettes e charlottes estão no naipe das preferidas, que inclui outras bem ao gosto português, como os incontornáveis leite-creme e arroz doce. A estrutura de um cardápio incluía sopa, hord d’oeuvre, prato de relevo, entrada quente, entrada fria, assado, legumes, entremeios e doces. O jantar tinha mais pratos do que o almoço — o primeiro 11, em média, o segundo seis — e era comum chamar “dieta” a alguns.

Uma dieta que, ao que tudo indica, não preocupava D. Carlos, que cresceu numa casa onde à ceia havia quase sempre carne assada com batatas fritas. D. Amélia queixa-se à sogra, aliás, de que o marido não tem cuidado com a saúde, chegando a referir-se expressamente aos seus hábitos alimentares de tradição familiar: “Há muito que lhe suplico que preste atenção ao seu estômago (do qual se queixa frequentemente), e que faça uma dieta. Ele come muito pão com manteiga.”

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