Lamentamos a interrupção: este trabalhador vai ser desligado

Vivemos de olhos no ecrã, com notificações ligadas, em estado de alerta. Disponíveis e localizáveis — a qualquer hora. Na sociedade do alto rendimento, ainda é possível distinguir vida pessoal e profissional? O direito a desligar é concretizável? Vantagens e perigos, sinais de alerta e dicas, histórias felizes e assim-assim.

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Miguel Feraso Cabral

Vivia em permanente plantão, com dois trabalhos às costas e disponibilidade a tender para o infinito. E pensava que esse modo de vida — abraçado por uma mistura de auto-imposição e pressão superior — não lhe causava mossa. Até àquela semana em que o mundo pareceu desabar-lhe em cima. Ana Rodrigues tinha perdido peso, não conseguia comer nem dormir. Começou a ter taquicardias. Um dia, numa sexta-feira que não esquece, ruiu. Os amigos não estavam por perto, a família acabara de embarcar de férias, os seus médicos estavam ausentes. Viu-se sozinha. E entornou um choro de um cansaço imenso que nem sabia estar a acumular.
— Não tive noção de que estava a entrar em esgotamento. Apenas de que estava cansada. Foi tudo muito rápido.

O diagnóstico foi igualmente lesto: esgotamento, ansiedade, burnout. A prescrição de medicamentos veio acompanhada por uma baixa médica. E ordens de desligar.

No consultório do psiquiatra Pedro Afonso têm entrado cada vez mais pessoas que, sem antecedentes psiquiátricos, se vêem engolidas por um mundo com demasiada pressa para se alinhar com uma vida saudável. “Ao fim de algum tempo a vivenciarem essa pressão laboral, atingem o limite e, em muitos casos, terminam numa situação de doença psiquiátrica. Essencialmente perturbações depressivas e de ansiedade.” É inevitável e está cientificamente comprovado, aponta o autor de dois estudos sobre o impacto do excesso de carga horária laboral na saúde mental e familiar: “A partir das 48 horas semanais de trabalho, há riscos para a saúde física e psíquica.” É possível, sim, aguentar essa sobrecarga durante um determinado período. “Mas depois é só uma questão de tempo e de variabilidade individual até a pessoa entrar em ruptura e cair numa situação de doença.”

A mudança veio com a tecnologia, a carregar promessas de uma vida mais facilitada. Mudaram-se as fronteiras, adoptou-se outra definição de tempo e espaço. Tudo pareceu tornar-se mais fácil. Mas será?

“Com o advento das novas tecnologias, da digitalização e novas formas de trabalho, o emprego invadiu completamente a nossa privacidade, espaço de família e convívio social.” Palavra dada ao advogado Eduardo Castro Marques, que recorda a luta de séculos pela conquista da jornada de trabalho de oito horas: “Está legalmente previsto e regulamentado”, aponta. O problema é que “todas as plataformas vão convocando as pessoas para trabalhar” e “a tentação para que o emprego nos acompanhe nos dias de semana fora de horas, aos fins-de-semana e férias é grande”.

Em 2015, a Associação Americana de Psiquiatria, responsável por aquela que é considerada a “bíblia” das doenças mentais, o DSM, ponderava considerar o uso excessivo da Internet como uma doença mental. Não é possível, pois, falar da digitalização do trabalho e das suas implicações sem falar desse “grande vício” da hiperconectividade. A expressão é do espanhol Enric Puig Punyet e deu título ao livro onde analisa a revolução que a Internet trouxe às nossas vidas e conta as histórias de dez pessoas que decidiram desligar-se da Internet — e que vivem bem assim.

O próprio autor, doutorado em Filosofia, fez o mesmo em 2016, mesmo com a consciência de que “o problema não está na tecnologia em si” mas antes na crença de que ela é “neutra”. Consequências negativas da tecnologia no nosso quotidiano? O autor acredita que o desenvolvimento tecnológico não só reproduz as desigualdades sociais como as aumenta. “O avanço da revolução digital tem andado de mãos dadas com certos grupos que se coroaram como grupos de poder e que estabeleceram as bases normativas dos ambientes digitais”, respondeu-nos numa entrevista por e-mail. No seu livro El Dorado Uma História Crítica da Internet, viaja por esses meandros e procura provar que a situação em que vivemos foi “imposta” por um pequeno grupo de poder, que dita as regras sem que os utilizadores possam contestar.

O título de um estudo norte-americano divulgado em 2016 é elucidativo: “Exaustos mas incapazes de desconectar” (numa tradução livre). Não se trata apenas do incontável número de horas de olhos fixados nos ecrãs, a responder a e-mails ou mensagens, alertam os autores Liuba Belkin, William Becker e Samantha A. Conroy: há um “stress antecipado” e uma “ansiedade” em dar resposta a assuntos laborais fora do horário que está a levar os trabalhadores ao “esgotamento”. As 567 pessoas entrevistadas no estudo disseram dedicar, em média, oito horas semanais a responder a e-mails para lá do tempo de expediente.

É uma exigência da entidade patronal ou uma auto-imposição? E quem pede a liberdade de desligar consegue efectivamente fazê-lo ou sente-se solitário sem a tecnologia como companhia e acaba refém dela de qualquer forma?

Para o advogado Eduardo Castro Marques, as culpas do excesso estão repartidas. De um lado temos os trabalhadores com “muita dificuldade em disciplinar-se para desligar do trabalho”. Do outro, as entidades empregadoras que se vão habituando a funcionários “quase sem horário”. Por isso, defende, é preciso que “o legislador dê um sinal, haja um enforcement legislativo” e que sejam fomentadas nas empresas “políticas internas que censurem estas práticas”.

É também nesse sentido que aponta o estudo americano antes citado: devem ser incentivadas práticas que suavizem os efeitos negativos do excesso de trabalho. E se banir o e-mail para lá do horário de trabalho parece uma medida radical, que se adoptem medidas intermédias: como “dias livres de e-mails” ou “agendas rotativas”, permitindo aos trabalhadores gerir melhor a vida pessoal e profissional. Tais políticas, acreditam, não só diminuem a pressão para que se responda a e-mails fora de horas e diminuem cansaço e stress, como dão um sinal de apoio das empresas a quem o decide fazer.

França foi o primeiro país a dar sinais de mudança. No início de 2017, o Governo de François Hollande apertou a legislação para garantir o direito a desligar: as empresas com mais de 50 trabalhadores passaram a estabelecer horários para a conexão e ficou escrito que os funcionários têm direito a pelo menos 11 horas de descanso entre duas jornadas de trabalho. Há quem, por exemplo, bloqueie os telemóveis da empresa a partir de determinada hora, impossibilitando os trabalhadores de verem e-mails ou fazer chamadas. Espanha também já adoptou algumas medidas.

Em Portugal, a discussão instalou-se em meados do ano passado. O PS propôs um reforço das penalizações para empresas que violem o direito a desligar. Mas deixou em aberto uma espécie de cláusula prerrogativa: em casos excepcionais, as empresas podem contactar os funcionários. Mesmo que estejam de férias. Os restantes partidos não aprovaram. E depois de o diploma baixar à comissão parlamentar de Trabalho e Segurança Social, foi aprovada uma recomendação ao Governo para que fossem adoptadas medidas no sentido de garantir o efectivo cumprimento do horário de trabalho e a conciliação deste com a vida profissional.

Flexibilidade é bom

Mas o mundo não é a preto e branco. Na University College London, Anna Cox dirige um centro que estuda a interacção entre humanos e computadores. E está longe de ver nas máquinas a figura do vilão. Pelo contrário. “Alguns dos desafios que a flexibilidade trouxe são a gestão dos limites entre o trabalho e a vida pessoal e o ser capaz de dizer ‘agora não estou a trabalhar’”, começa por explicar, numa entrevista à agência France Press.

A adopção de leis como a francesa são, para a investigadora, um retrocesso. Idealmente, defende, cada trabalhador poderia escolher entre ter muros bem altos a separar a vida pessoal e profissional ou eliminar essas barreiras. Com problemas e benefícios a isso associados: “Algumas pessoas querem poder trabalhar duas ou três horas à noite, mas ter o direito de desligar às 15 ou 17 horas para poder ir buscar os filhos à escola e fazer o jantar”, exemplifica.  

É um ensaio do mundo perfeito. E Ana Verde prova que não é uma utopia. Talvez o bom senso seja insuficiente e as regras bem-vindas, opina quando desafiada a reflectir sobre o tema. Mas, em abono da verdade, nada disso faz sentido no caso dela. “O meu trabalho faz parte da minha vida, não o vejo como uma intrusão”, diz.

É raro Ana Verde ser contactada por telefone fora do horário de trabalho, mas tem as notificações de e-mail ligadas e se surgir algum assunto importante está disponível para responder. A empresa, do sector financeiro, dá aos trabalhadores iPad e iPhone com plafonds ilimitados e não restringe o uso à actividade profissional. Há “flexibilidade”, diz Ana, licenciada em Economia e mestre em Finanças. E isso é válido nos dois sentidos. Se trabalha mais horas do que é suposto num dia, pode compensar noutro. “Acho que fico a ganhar.” O segredo está no espírito de equipa criado na empresa. “Toda a gente faz um esforço conjunto. Ajuda ter amigos no local de trabalho e os chefes valorizam [o esforço]. Mas salientam sempre que a vida pessoal e familiar está primeiro”, garante.  

António Horta-Osório, presidente executivo do banco britânico Lloyds, percebeu que o excesso de trabalho era um problema da pior forma possível. A crise financeira acabou, em 2011, numa intervenção no banco britânico que dirigia. Ele deu entrada numa clínica para prevenir um “esgotamento nervoso”. Tornou o seu caso público — para desmistificar a ideia de que a queda não acontece a quem está no topo e para falar sobre saúde mental nas empresas. No início de Maio, contou a sua experiência nas páginas do The Guardian.

Apesar das mudanças no mundo do trabalho, escreve, há um problema que continua por resolver: a baixa produtividade. E é nesta equação que o empresário inclui as consequências humanas e económicas das doenças mentais.

Susana Mendes conhece-as bem. No final de 2016 viu-se no meio de uma crise de ansiedade, um cansaço imenso, e teve a vida familiar na corda bamba. Era a acumulação de muitos anos de um trabalho onde desaprendeu de respirar. Sem dar por isso.

Tinha uns 19 anos quando agarrou aquele primeiro emprego numa loja de roupa num centro comercial. Sempre gostou da ideia de ser vendedora e dava “tudo por tudo” para conseguir os melhores resultados. Não pensava se trabalhava mais do que era suposto, se isso era ou não correcto. À medida que foi ganhando mais responsabilidade na loja, acumulou também mais dores de cabeça. Ligavam-lhe para tirar dúvidas sobre as vendas no seu turno, para perguntar como tinha corrido, para agendar inventários e reuniões, para discutir estratégias e objectivos. “Ia para casa com aquela pressão... Se o telefone tocava, ficava numa ansiedade enorme e tinha de atender”, conta. Perdeu a conta ao número de vezes em que viu a folga cancelada sem aviso prévio. A ideia incutida era “a loja primeiro”. E Susana foi nessa conversa por muito tempo. Demasiado tempo, percebe agora.

Quando o filho mais velho entrou na primária percebeu que tinha de mudar. O menino não dormia enquanto não chegava, às vezes para lá da meia-noite, e com um horário de escola não podia continuar a sujeitá-lo àquilo. Passou a viver “ao contrário” do marido, também trabalhador por turnos: se ela fazia manhãs, ele ficava com as noites. E vice-versa. Pensaram ser a solução para uma gestão mais eficaz da vida deles. Mas depois perceberam que o sistema os condenava a viver sozinhos. “Nunca nos vemos.”

A crise de ansiedade era o manifesto do corpo a ceder. A “pressão” de vendas diminuiu entretanto — mas Susana sabe que não chega. “Dizem-nos sempre quais são os nossos deveres, o que ninguém nos fala é dos nossos direitos”, lamenta. Mas ela aprendeu a conhecê-los. E a saber o que lhe trazia o sorriso no fim do dia: “Durante muito tempo a minha prioridade foi a loja. Agora é a minha família.”

É essa a pedagogia apregoada pelo psiquiatra Pedro Afonso aos seus pacientes e no livro Quando a Mente Adoece, onde, com alguma ironia à mistura, deixa uma prescrição insólita: passar uma noite por semana à luz das velas. Reflictam sobre a “cena um bocadinho decadente” que vai sendo cada vez mais comum: amigos e famílias a jantarem juntos, mas vidrados nos ecrãs, pessoas a poucos metros de distância a trocar mensagens em vez de comunicarem olhos nos olhos. “A boa utilização da tecnologia é também saber descansar”, aponta.

Enric Puig Punyet sublinha a necessidade de “recuperar certos ritmos de processos não digitais que envolvem maior concentração e foco”. É que a digitalização trouxe algumas “falsas crenças, como o multitasking, a ilusão de que podemos fazer várias coisas ao mesmo tempo (quando, na realidade, o que fazemos é interromper processos a toda a hora)”. Para uma “descontaminação digital”, pode começar-se por exemplo por “remover as notificações do smartphone”, sugere.

Mas há outro ponto a ter em conta: a digitalização levou, “em muitos casos, a um aumento da precariedade laboral, entendendo-se que o trabalhador deve multiplicar as suas funções e estar sempre disponível em troca de pouca ou nenhuma recompensa”. E o “abuso” não parte só da entidade patronal: “As redes sociais tornaram normal um comportamento em que todos nos convertemos em trabalhadores a tempo inteiro, oferecemos conteúdos e com padrões de exigência que roçam a profissionalização. Nesse sentido, tornamo-nos trabalhadores assalariados (ou com salários mínimos) para todas as empresas [que dominam esta área].”

Sinais de alarme e mudança

Quando não existe um equilíbrio, diz Pedro Afonso, o corpo acabará por se ressentir. E há “sinais de alarme” a ter em conta. Quando a pessoa acorda cansada ou quando se chega a segunda-feira já cansada, isso significa, à partida, que há um processo cumulativo, alerta. O sono é também um indicador a ter em conta: dormir pior e ter insónias é mau sinal. E as alterações da função cognitiva devem ser tidas em conta: há mais dificuldade em manter a concentração e realizar tarefas, mais perdas de memória de curta duração, mais irritabilidade. Se uma pessoa percebe reacções exacerbadas perante uma contrariedade não assim tão complexa, talvez esteja a precisar de descanso, aponta. E uma dica para os pais: começar a ter menos paciência para os pequenos, menos vontade de brincar e incapacidade para lidar com birras é caso para acender a luz amarela.

E tudo isto é fácil de contrariar? “Não, é muito difícil”, admite o especialista, que procura não atender chamadas durante as consultas e manter os mundos pessoal e profissional separados. Algumas dicas para pôr em prática: “Fazer períodos de pausa ao longo do dia, uns cinco minutos ao fim de duas horas, é importante para a recuperação”, tal como “aproveitar as horas de almoço para desconectar efectivamente”. Lá por casa, é aconselhável desligar da tecnologia “umas duas horas antes de ir dormir” e optar, nesse período, por uma actividade mais relaxante, como ler ou ouvir música. “Isso ajuda o cérebro a não ficar em hiperestimulação, é preciso haver restauro metabólico.”

Se não houver outro argumento para convencer empresas e trabalhadores com dificuldade em desligar, Pedro Afonso joga com o da produtividade: “Isso alcança-se fazendo uma boa gestão dos recursos humanos”, diz. E deixa uma sugestão aos patrões: se há anos era moda as empresas assumirem compromissos de solidariedade social, porque não assumirem-se agora como “familiarmente responsáveis, dizendo que os seus trabalhadores devem ser saudáveis e ter tempo para uma vida além-trabalho”?

Ana Rodrigues recuperou do estado de burnout. Voltou ao trabalho ao fim de 15 dias de baixa e desligou as notificações de e-mail, algo que tinha accionado desde que tem um smartphone. Continua a não desligar o telemóvel (o máximo que faz é accionar o modo voo de longe a longe para dormir uma sesta), a cancelar cafés com os amigos porque o trabalho aparece sem avisos, a ser interrompida nas férias e fins-de-semana. “Sou muito exigente comigo mesma e não consigo chegar às 18 horas e desligar”, admite. “É algo intrínseco a mim. Mas se há abuso, digo; e se tenho de sair mais cedo, saio.” Aprendeu a dosear melhor. Porque percebeu que passar a fronteira era um passo num vazio onde a doença se instalava. “O limite”, aponta, “é a saúde.”

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