Para que haja menos “Marias” a dar um passo em frente na 25 de Abril

Não temos nada se estivermos num conflito interno permanente. Não temos nada quando ninguém nos entende, até o ser humano mais frio deste planeta precisa de compreensão e aprovação, faz parte da natureza humana. A Maria acabou com o seu sofrimento profundo

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Glenn Carstens-Peters/Unsplash

“Tinha família, namorado, amigos e emprego, não conseguimos entender porque fez isto”, comentaram comigo há poucos dias. Já ouvi várias vezes esta observação e os anos passam e, em contextos ligeiramente diferentes, continuo a ouvi-la. Estamos estagnados. Ninguém parece entender porque as pessoas fazem esta escolha e, por isso, pareceu-me urgente escrever sobre o tema. Temos de reflectir e chegar a conclusões mais profundas do que a fácil — e preguiçosa — consideração: “Nada o justifica.” Se nada o justificasse não acontecia. Há motivos e há culpados. Mas vamos por partes.

Estes desabafos e a procura de uma justificação — que infelizmente já não traz soluções — são feitos com a melhor das intenções porque ainda existe um desconhecimento enorme sobre esta temática, por falta de sensibilização para a mesma e porque a maior parte das pessoas se desconhece a si própria. Logo, desconhece o outro. A correria da vida não deixa muito tempo para essa descoberta interior — talvez a mais importante — e os modelos de educação em Portugal ainda são muito arcaicos privilegiando tudo menos o essencial: o desenvolvimento pessoal. A par disso, não saímos assim há tanto tempo de um regime altamente conservador e continuamos a ser um país profundamente católico, que questiona muito pouco ou quase nada. Não é virgem a afirmação “Somos uns carneirinhos”. E o que me parece ser mais grave no meio disto tudo: a saúde mental (ainda) é um tabu.

No início deste texto referia-me a mais um jovem que decidiu dar um passo em frente na Ponte 25 de Abril. Não é o primeiro caso, nem será o último. Acontece todas as semanas. Vou chamar-lhe Maria, por respeito aos familiares e amigos. A Maria precisava de ajuda, como todos nós em alguma fase das nossas vidas. Mas não era a ajuda da família, nem dos amigos, nem do namorado. A Maria precisava de uma ajuda especializada, mas, como ainda não há muito conhecimento sobre o que faz um psicólogo ou um psiquiatra, em que consiste uma psicoterapia, a necessidade e importância de a fazer em algum momento da vida, ninguém ajudou a Maria. Ela ajudou-se a ela própria da única forma que lhe pareceu possível, porque a Maria não sabia que existiam alternativas, só conhecia a realidade dela e as pessoas que dizem constantemente, sem maldade, que “tinha tudo”. Não temos nada se estivermos num conflito interno permanente. Não temos nada quando ninguém nos entende porque até o ser humano mais frio deste planeta precisa de compreensão e aprovação, faz parte da natureza humana. A Maria acabou com o seu sofrimento profundo, apenas. Só não sabia que havia outra forma porque, se calhar, diziam-lhe que “tinha tudo” e ela sentia que não tinha nada e não sabia porquê. Muitas pessoas não procuram ajuda pois nem sabem que precisam de ajuda porque, repito, não há qualquer tipo de consciencialização e sensibilização para estas temáticas. 

O suicídio é o último grito de ajuda. Uma pessoa que tira a própria vida está num estado de angústia tão profundo que não consegue ver outra alternativa. Esta pessoa foi certamente muito feliz, sem felicidade não conhecemos o sofrimento. E quem tem a sorte de conhecer a felicidade, pelo menos uma vez na vida, não quer morrer, tenho a certeza. 

Cada vez mais encontro pessoas que desconhecem que a felicidade é um estado que vem apenas de dentro de nós. Sim, essa frase “cliché” que entope as redes sociais é das poucas que ainda se safa na quantidade enorme de lixo virtual que por aí paira. Por isso, os factores externos podem ajudar ou dificultar o alcance da felicidade, que todos ambicionamos, mas esta vem sempre dos recônditos mais escondidos da nossa mente complexa, do profundo do nosso inconsciente, enfim, da nossa essência. E, quanto melhor nos entendermos, mais nos aceitamos e convivemos com os nossos problemas que, por mais que os partilhemos com o mundo, serão sempre só nossos, lidaremos sempre com eles sozinhos. Acho que até é isso que assusta muitas pessoas.

Mas — e foi essa a razão que me levou a escrever este texto — há excelentes novidades para todos os que estejam num sofrimento devastador, aquele que muitas vezes nem sabem de onde vem porque, aparentemente, não há razões para estar assim. Há sempre motivos e nem sempre é uma doença mental que o justifica. Segundo o mais recente relatório da Direcção-Geral de Saúde, “o suicídio verifica-se sobretudo em pessoas com doenças mentais graves, na sua maioria tratáveis e integra o grupo de mortes potencialmente evitáveis”. Mas há mais: alguns diagnósticos são incorrectamente realizados e até há psicólogos que defendem que há “doenças” do foro psicológico que não existem, apenas tinha de se dar um nome — ou rotular — um conjunto de sintomas que até é prevalecente na maioria do ser humano comum, em alguma etapa da sua vida. Aconselho a leitura do livro Como tornar-se um doente mental, de José Luís Pio Abreu.

Em 2013, Portugal era o terceiro país da Europa onde o suicídio mais tinha crescido nos últimos 15 anos. Segundo dados de um relatório da OSPI-Europe, uma estratégia de prevenção do suícidio preconizada pela Aliança Europeia Contra a Depressão (EAAD), mais de cinco portugueses suicidam-se todos os dias e, por ano, morrem cerca de duas mil pessoas por esta causa. Segundo o relatório mais recente da Organização Mundial de Saúde sobre a situação da saúde mental no nosso país, referente a 2016, este número baixou, situando-se em cerca de mil casos por ano. Tendo em conta que muitos familiares optam por não mencionar na certidão de óbito — por tabu ou preconceito — a verdadeira causa da morte, haverá certamente mais. De acordo com o documento, em Portugal, as doenças mentais comuns afectam quase 23% dos portugueses adultos (mais de dois milhões por anos) e a depressão afecta 7,9% dos adultos (400 mil pessoas).

Os dados divulgados pelo Relatório da Avaliação do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 e Propostas Prioritárias para a extensão a 2020 revelam ainda, que, no ano passado, os portugueses compraram 20 milhões de embalagens de psicofármacos. Houve, contudo, uma descida no consumo de ansiolíticos, uma estabilização dos fármacos para as psicoses e um aumento do consumo de antidepressivos. O bastonário da Ordem dos Psicólogos lamentou, recentemente, a falta de estratégia de prevenção que evite o aumento do consumo deste tipo de medicamentos. Francisco Miranda Rodrigues defendia que os psicofármacos são uma “solução rápida” que apenas reduz os sintomas. São uma espécie de penso rápido, que numa primeira fase pode ser essencial, mas, também está comprovado, pode ter o efeito contrário se tomado durante muito tempo. Há medicamentos que, pelas alterações químicas que provocam no cérebro, levam muitas pessoas a terem, pela primeira vez, pensamentos suicidas. Às vezes, e ironicamente, são a causa de mais uma morte. Estes processos requerem, por isso, um grande acompanhamento e, de preferência, especializado.  

No final do ano passado, a Ordem dos Psicólogos Portugueses dizia que os resultados deste relatório mostram que, passados dez anos após a criação do Plano Nacional de Saúde Mental, continua a não existir uma estratégia para a prevenção das perturbações mentais, em Portugal. Ainda de acordo com os dados deste relatório, 64,9% de pessoas com perturbações mentais moderadas e 33,6% de pessoas com perturbações graves não recebe cuidados de saúde mental adequados, numa realidade que a Ordem dos Psicólogos apelida de “injustiça social”. Espero que estes psicólogos não sejam os mesmos que negam consultas a pessoas que precisam desesperadamente de ajuda, mas não têm condições financeiras para pagarem os valores exorbitantes que estes profissionais praticam. Se forem os mesmos que o fazem é de uma hipocrisia muito grande.

Posto isto, acho que o Sistema Nacional de Saúde continua a falhar, e muito, ao não colocar a saúde mental como uma prioridade e, por vezes, até a desvalorizar. Depois aparecem hipertensos e mortes por AVC, que é (que coincidência) a principal causa de morte natural em Portugal. Está tudo relacionado. Não é preciso ser médico para saber que muitas doenças resultam do mau estado da nossa saúde mental. Os psicólogos continuam a falhar e os privados falham todos os dias ao cobrarem valores impraticáveis por consulta. Se o acesso fosse mais acessível, tenho a certeza absoluta que muitas mais “Marias” estariam vivas neste momento. Continuam a falhar todos os que desprezam a importância do trabalho dos psicólogos, muitos por desconhecimento. Continuam a falhar todos os que dizem: “Não tens nenhum problema, esquece isso.” Muitos não o fazem por mal, fazem-no por falta de informação. Continua a falhar a falta de sensibilização para esta temática. Há uma linha de apoio de prevenção ao suicídio, a SOS Voz Amiga, com falta de voluntários e poucos recursos. Não conseguem atender as chamadas todas, já o disseram várias vezes. Continua a falhar a falta de tempo para o outro. Continua a falhar a sociedade, muito doente, egoísta e fechada nela própria.

Em 2018, anunciou recentemente o Governo, o financiamento dos hospitais na área da saúde mental vai mudar, passando as unidades a receber por doente e não por número de consultas ou internamentos. O programa para a saúde mental entre 2017/18 prevê, ainda, a promoção de acções de combate ao estigma sobre a saúde mental. Boas notícias, mas podiam ter chegado mais cedo. A Maria não era minha amiga. Nem a conhecia. Mas sei que a Maria tinha a minha idade (28 anos) e um grande futuro pela frente. E não consigo ir dormir descansada a pensar que, neste momento, pode estar outra Maria a saltar da ponte.

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