Desistir para ganhar

Sem saber nem como nem porquê, tornámo-nos pessoas medíocres. Até nos podemos achar boas pessoas, mas não soubemos ser pessoas boas para nós mesmos. O “não me apetece, mas tem de ser” ecoa nas nossas cabeças vezes suficientes para nos levar a crer que tem mesmo de ser assim. Mas será que tem?

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Sebastián Villegas/Unsplash

Qualquer um de nós seria o primeiro a reprovar a falta de inteligência de um agricultor que, sendo proprietário de um terreno fértil, optasse por plantar as suas sementes num areal. Porém, é isso que sistematicamente vamos fazendo com as nossas vidas. Desperdiçamos toda a nossa paixão, talento e entusiasmo em rotinas arenosas que enclausuram o brilho que carregamos no âmago do nosso ser. Vivemos desencontrados de nós mesmos. Vemo-nos cada vez menos e, muitas vezes, morremos (quase) literalmente de saudades de nós próprios. Porém, parece que este distanciamento da nossa essência é um alarme que não toca alto o suficiente para que acordemos do coma social. Mas afinal, onde é que nos perdemos? Em que fase deixámos de trilhar o nosso próprio caminho?

Talvez o primeiro momento em que tivemos de decidir “esquerda ou direita?” tenha sido nas vésperas da ida para a faculdade. Parece surreal (e para mim é) que se esteja a pedir a jovens de 18 anos que decidam naquele momento qual vai ser a sua profissão para o futuro. Ao mesmo tempo que não têm autonomia para ir à casa de banho sem pedir ao professor, exige-se que saibam o que querem fazer das suas vidas. É, no mínimo, incoerente. Contudo, e colocando a discussão dos sistemas de educação de parte, é na escolha do curso que muitos de nós calça pela primeira vez sapatos que não são os seus. O facto de se ter boas notas rapidamente remete quem nos rodeia para a ideia de que não se pode “desperdiçar” a média em “cursos sem saída”. A meu ver, a única coisa sem saída neste tipo de sugestões é o beco em que sugerimos que a pessoa enfie a sua vida. Temos de ter uma carreira, estabilidade financeira, estatuto social e, em troca, uma vida enfadonha. Para quê? Ter “Dr.” ou “Dra.” antes do nome no cartão multibanco nunca foi, nem nunca será, sinónimo de alegria. Provavelmente foi aqui a primeira vez em que, para nos sentirmos mais (des)integrados, pusemos de parte aquilo que nos apaixonava.

Entretanto, a vida continuou. Temos agora um curso e um trabalho que não nos dizem grande coisa, mas toda a gente diz que “é melhor que nada”. Se é o que toda a gente diz, nós temos mais é que acreditar. A possibilidade de estarem todos enganados nem nos passa pela cabeça. Somos agora demasiado novos para assentar e demasiado crescidos para andar a saltar de namoro em namoro. Ainda assim, ficar no meio-termo é demasiado “arriscado” face ao que podem julgar de nós. À semelhança da profissão que exercemos, o nosso relacionamento já não nos faz palpitar o coração. As borboletas no estômago há muito que bateram as asas para outro lado e a força do hábito é a única coisa que nos mantém unidos. A auto-estima naufragada no mar da apatia leva-nos a ter a certeza de que melhor do que aquilo que temos já não vamos arranjar. “Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”, mesmo que esse pássaro já não saiba bater as asas. Portanto, o cenário mais seguro será acomodarmo-nos. Desta forma junta-se à vida profissional mais ou menos uma vida amorosa assim-assim.

Sem saber nem como nem porquê, tornámo-nos pessoas medíocres. Até nos podemos achar boas pessoas, mas não soubemos ser pessoas boas para nós mesmos. O “não me apetece, mas tem de ser” ecoa nas nossas cabeças vezes suficientes para nos levar a crer que tem mesmo de ser assim. Mas será que tem?

Para ganhar, às vezes, é necessário desistir. Abdicar daquilo que não é nosso alivia a nossa mochila existencial e, por isso, o nosso voo fica facilitado. Se não for justo, então não serve. Viver à larga passa por recalcular a rota e evitar os caminhos mais apertados. E tudo isto depende mais de nós do que imaginamos. Não se trata daquilo que a vida fez connosco, trata-se sim daquilo que nós soubemos fazer com aquilo que a vida fez connosco. E não, não é preciso ser-se nem destemido nem audaz, muito menos corajoso. Levar uma vida (es)forçada requer muito mais energia e destreza do que viver a nossa verdadeira vida. Experimenta espreitar além da cortina que nos rodeia e aí reencontrarás tudo aquilo que a intuição já te vem gritando há tempos.

Tenta e (vi)verás.

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