Os arquitectos e a guerrilha profissional com engenheiros

Não há uma crise de identidade na Arquitectura, há na Engenharia. Numa profissão em que se tem tanto para fazer é curioso que eles ainda queiram fazer o que não lhes compete — desenhar Arquitectura

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Calvin Chin/Unsplash
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É com prazer que vou tentar clarificar este quebra-cabeças, que julgo ser do vosso interesse solucionar. Afinal o que é Arquitectura? Esta é uma questão que assombra arquitectos ao longo da sua carreira, pois a Arquitectura é multidisciplinar. Este conflito é pessoal, mas mais importante ainda torna-se universal com o tempo. A ideia esqueceu-se pois o humano é um ser pragmático que tende a esquivar-se dos eruditos, talvez por os achar distantes da vivência humana. Arquitectura é, como a Ordem dos Arquitectos tentou explicar fabulosamente com a campanha Trabalhar com Arquitectos, o que tem à sua volta e o que pode mudar. Cuida dela e ela tentará cuidar de ti. Para isso estão cá os profissionais de Arquitectura que nos ajudam a criar o nosso habitat.

Trago este tema com algum pavor, reconheço, pois actualmente encontra-se por aprovar uma proposta de lei que prevê a burocratização da actividade do Arquitecto, por meio de estratégias antigas e questionáveis, injectando na Arquitectura o chamado Engenheiro-Arquitecto (sem formação académica). Para minha surpresa um grupo de Arquitectos, bem-intencionados, tentam contrariar esta proposta de lei do PSD através de uma petição. Uma coisa que aprendi na minha formação é que um engenheiro é um senhor que devemos ter sempre em estima, apesar de ter sempre em mente que devemos estimar mais o que nos levou a contactar com um engenheiro — no caso de um projecto de arquitectura, que obviamente necessita de uma estrutura calculada e de uma série de tecnicidades que asseguram o conforto térmico, acústico, técnico, entre outros; digo isto pois avisaram-me que ele nos irá sempre tentar demover de ideias menos corriqueiras e populares.

 

Na minha jovem experiência profissional, pouco tenho a queixar-me, mantenho uma relação saudável com todos os meus amigos engenheiros. Defendo o conforto e eles o básico, a diferença é que o que eu defendo é “caro”, segundo dizem, e o que eles defendem é, para dizer a verdade, desconfortável, pouco prático, feio, imperfeito e por vezes até de qualidade técnica duvidosa. Mas nem tudo é mau, há bons profissionais de engenharia que merecem uma salva de palmas pelo grande profissionalismo. Quanto às experiências de habitação menos agradáveis de engenharia civil, refiro-me ao que todos conhecemos, através da casa daquele avô, tio, pai, primo, o que for, em que passamos frio no Inverno e muito calor no Verão. Entretanto, é curioso que o que eles vendem é o contrário, que o Arquitecto só pensa na beleza. Uma verdadeira falácia, para não dizer um termo menos digno. O Arquitecto só pensa na felicidade do cliente, através de um bom projecto, em todos os sentidos. Sai mais caro? Tenho as minhas sinceras dúvidas que a longo prazo assim seja, mas sou suspeito. Convido-vos a fazer o teste.

 

Penso que de modo algum se deve pôr em causa a pertinência da profissão da Arquitectura e a sua mestria independente, por fins políticos ou oportunistas, de modo a construir uma tal falácia populista, com que muitos portugueses tiveram de crescer e continuam. Falo daquela curiosa ideia, mas nem tanto, de que os Arquitectos são de alguma forma caríssimos e os engenheiros são por obra divina mais baratos. Isto é uma atitude que, de certa forma, reflecte a baixa auto-estima de quem a começou por propagandear. Recuso-me a fazer aqui acusações ou apontar dedos, penso que todos sabemos quem tinha interesse nesta ideia absurda. Para os que não entenderam ainda o absurdo que é esta ideia, passo a explicar: a Arquitectura é a forma como escolhemos viver o presente, pensado no futuro e honrando o passado; Arquitectura é escolher como viver e onde viver, assumindo sempre o erro pois cada um habita de forma diferente do outro. A cidade, a aldeia, o bairro, a rua e a vizinhança, estas coisas surpreendentes onde vivemos são o reflexo da nossa vivência como comunidade, é o que nos define como povo. Isto, meus senhores e senhoras, é Arquitectura. Os sorrisos, as lágrimas, os apertos e as chamadas tardias que nos mantêm acordados de noite são o que nos ajuda a vivenciar a Arquitectura.

 

Pois bem, tornou-se mais claro? Ainda não? Eu ajudo. Arquitectura é historicamente conhecida pela forma como os seres humanos escolheram habitar, social e formalmente, uma determinada zona e época temporal; engenharia é historicamente conhecida pelo seu auge na década de 70, através dos grandes investimentos em habitação massiva. Gilbert Mercurio, vice-presidente executivo do Conselho de Agentes Imobiliários do Condado de Westchester, disse em 1997 que “na fase tardia dos anos 70, começou-se a ver habitação mais densa, que oferecia aos investidores mais controlo nas despesas e foi uma alternativa pragmática às casas unifamiliares tradicionais.’’ Como é claro, G. Mercurio refere-se ao “boom na construção civil”, através do aumento do mercado financeiro mundial, em que se construiu edificado de forma explosiva e descontrolada, assim um pouco à semelhança do que a China tanto faz, resultando numa maior oferta que procura e condições de construção questionáveis.

 

Talvez tenha de tornar as coisas mais claras porque provavelmente já existem mais pessoas a espumar-se da boca, para além do meu cão. O que é Arquitectura já devem ter percebido pelo meu desabafo longo, tenho de me desculpar; o que é engenharia é que podem não ter compreendido ainda. Eu explico de uma forma mais simpática. Já todos jogaram aquele jogo fantástico chamado jenga, certo? Se já, tudo bem; se não, aconselho a que joguem. É um jogo que consiste na extrusão de volumes, originalmente em madeira, de uma torre composta por eles. A ideia é que o primeiro a provocar a sua derrocada se torne no perdedor e os outros nos vencedores. Tal como o jogo, também a engenharia civil é estrutural e necessita de todas as suas peças —  técnicos de electricidade, gás, água, AVAC, AC, térmica, acústica e talvez outras que me devem escapar. Todos são necessários para manter a obra de pé. Não deixa de me parecer curioso porque numa profissão em que se tem tanto para fazer eles ainda querem fazer o que não lhes compete — desenhar Arquitectura —, o derradeiro conflito que muitos de vós devem ter ouvido falar.

 

Resta-me dizer que não há uma crise de identidade na Arquitectura, há na Engenharia. Resta-me saber o que os representantes dos engenheiros nacionais escolherão fazer, a intenção já sabemos — conquistar mais uma coisa para juntar à lista de hipóteses de carreira. Como jovem arquitecto apenas deixo aqui um pedido a todos vocês, incluindo os nossos amigos no Palácio de São Bento. Dêem razões à minha geração para ter orgulho na herança que nos deixarem para que não venhamos a seguir o vosso exemplo. Escolham o lado certo da História.

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