A janela fechou-se para as crianças da Síria. E amanhã?

Sujeitar milhões de crianças a uma guerra é de um horror sem escala ou dimensão, é a batalha mais inglória ou cruel que o mundo pode conhecer

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Bassam Khabieh/ Reuters

“Sou o Said, tenho dez anos e quero viver pelo menos mais um pouco; Primeiro perdi o meu pai, depois o meu irmão e há um mês morreu a minha mãe. Estávamos na sala com as minhas tias e só me lembro de acordar na ambulância, muito perto do hospital. Foi uma bomba aérea que explodiu repentinamente. Quando tinha três ou quatro anos lembro-me da minha mãe me levar para o nosso terraço só para ver as estrelas no céu, agora tenho medo das bombas que aparecem de lá. O meu pai era o meu melhor amigo, mas a minha mãe ajudou-me a lidar com a morte dele, explicou-me que ele estaria a olhar para mim e que só teria de deixá-lo orgulhoso por cada gesto que tomasse. E é isso que tento fazer todos os dias, até naqueles que nem penso acordar, porque a hipótese de acordar aqui é tão remota como os dias bons.

Durmo pouco, pelo medo, por não poder fazer nada para que isto tudo mude, mas sobretudo porque tenho saudades da minha família. Porque estou sozinho. Porque perdi as pessoas que mais gostava. Porque sou uma criança contra a guerra. A minha escola também explodiu e perdi quase todos os meus amigos. Gostava de brincar no pátio e de um dia ser médico, para poder ajudar todas as pessoas feridas. Não há um dia que não veja sangue, armas, que não oiça bombas, tiros, confusão e pó; O meu pai fazia-me ouvir Beethoven, mas agora são as sirenes a única melodia que os meus ouvidos conseguem escutar.

Sabes, nunca vi o mar, o meu irmão prometeu levar-me lá, ele dizia que tinha um cheiro diferente, queria levar-me a Mersin na Turquia. Todos os dias sonhava com esta viagem; quando ainda podia sonhar; mas nunca aconteceu e agora já perdi a esperança. Porque a guerra nos leva as esperanças e mata-nos os sonhos. Ele morreu a combater com o exército livre da Síria, foram os do Estado Islâmico que o mataram. Ele é o meu herói, era valente e não tinha medo de nada, nem de morrer. Eu tenho medo de morrer. Mas às vezes tenho ainda mais medo de viver.

Sou apenas uma criança que só queria crescer, honrar a minha família e o meu povo, mesmo que saiba que por aqui já não se faz justiça. Poder sair à rua, ou poder comer uma refeição a sério, voltar a poder sonhar. Gostava de voltar a ouvir uma música. De olhar para o céu, porque nunca mais consegui levantar os olhos naquela direcção. A minha mãe dizia-me para nunca desistir e são as palavras que me dão coragem, para voltar a encarar o dia mesmo que as janelas estejam fechadas e o sol já não entre.

Hoje passaram mais de 50 ambulâncias por mim e voltei a tapar os ouvidos com as mãos. Porque não se vão todos embora e nos deixam viver em paz? Durmo numa cave, por baixo de uma sapataria com Kaled e a mulher, ele era o melhor amigo dos meus pais. Só queria que isto tudo acabasse, voltar à escola e poder sorrir às vezes, em vez de chorar. Mas e amanhã?”

Ele nunca saberá se o chegará a conhecer…

Said significa “feliz” ou “sortudo” que são coisas que ele já não é. É apenas uma criança que sente o que é comum a milhões de outras, que são violentadas na barbaridade de uma guerra que lhes leva tudo e não lhes deixa nada. Quantas vezes ouvimos: “Podem roubar-nos tudo menos os sonhos”, as crianças na Síria são a prova de que algo que parece tão simples já nem existe para eles. Quem pode sonhar sabendo que a manhã seguinte poder ser a maior das incógnitas?

Alguns têm medo de viver pelo medo de sofrer, perdem as famílias com a mesma facilidade com que nós perdemos os dados móveis. O mundo foge-lhes dos pés num instante e leva-lhes a esperança, fecha-lhes para sempre aquele brilho no olhar que só uma criança consegue dar. Não deve existir maior dor que a de uma criança, que se esquece do futuro pela incerteza do presente. Os meninos da Síria não conhecem a felicidade, porque lá ela não está ao virar da esquina. Sujeitar milhões de crianças a uma guerra é de um horror sem escala ou dimensão, é a batalha mais inglória ou cruel que o mundo pode conhecer.

Gostava de os juntar a todos, de lhes devolver as famílias, depois as casas que são os lares, abrir-lhes sorrisos únicos. Porque seriam os primeiros, entregar-lhes por direito a vontade de sonharem, exigir para cada um a liberdade de crescerem em paz, vetar-lhes para sempre a possibilidade ao medo e poderem, por fim, viver.

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