As ilustrações de Filipa ajudam a encontrar uma família para os gatos que ninguém quer

Os mais velhos, os mais feios, os doentes. Na hora de adoptar um gato, a "identidade" do bichano nem sempre é o mais importante. Para combater o preconceito, Filipa Namorado fez gifs e vídeos para o projecto Bichanos do Porto. Os animais retratados são reais — e procuram a família perfeita

Foto
Paulo Pimenta

São parte da vida dela desde que se lembra e viver sem eles por perto nunca foi uma opção. Na casa dos pais de Filipa Namorado, em Coimbra, coabita-se com três cães e três gatos. E no Porto, para onde se mudou quando entrou no ensino superior, divide o lar com dois pequenos cães. Por isso, quando teve de eleger uma temática para o projecto final da licenciatura em Design de Comunicação, da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Filipa não hesitou: “Era uma opção natural, já tinha este chip.” A escolha de Filipa foram os animais — os gatos, para sermos mais precisos. E o Bichanos do Porto, grupo informal de ajuda aos felinos, o projecto eleito para ser ajudado. O objectivo inicial: criar uma campanha de incentivo à adopção.

Quando Filipa Namorado foi ao encontro de Ana Mafalda Azevedo, uma das oito voluntárias do Bichanos do Porto, sabia muito pouco sobre aquele grupo de amantes de felinos. Conversa para a frente e para trás, explicados os modos informais de trabalho, os desafios e dificuldades do voluntariado animal e eis que surge o clique, quando Mafalda falou sobre os “gatos menos adoptáveis” — os mais velhos, os que têm algum problema de comportamento, algum defeito físico ou alguma doença, os menos fotogénicos ou os pretos. “Percebi que parte do foco do meu trabalho tinha de ser nos animais mais esquecidos”, contou, lamentando que ainda haja quem “adopte a pensar na estética”. Para o projecto portuense, a realidade é uma velha conhecida: os gatos bebés têm mais procura, assim como os peludos, os laranja, os cinzentos ou os brancos. Os outros ficam, às vezes, anos à espera de uma família: “Alguns acabam por ficar nas nossas casas para sempre”, contou ao P3 Ana Mafalda Azevedo.

Não é um comportamento generalizado. A voluntária — formada em Psicologia e com uma pós-graduação em Terapia Assistida com Animais (cães e cavalos) — acredita que já seja uma balança a pender para um meio termo: “Talvez uns 50% não se importem com as características do gato, querem adoptar apenas pela companhia”, congratula-se. Desses, há ainda “uns 20% que pedem especificamente um animal menos adoptável”. Há mais solidariedade — mas ainda pouca. Por estes dias, nas casas das voluntárias do Bichanos do Porto e nas Famílias de Acolhimento Temporário que apoiam o projecto, há uns 15 gatos. Alturas houve em que eram 50 — e desde 2004, quando o grupo foi criado, já quase 2000 felinos passaram pelos mimos destas voluntárias.

Advertising Spot for 'Bichanos do Porto' from Filipa Namorado on Vimeo.

Na escolha do suporte para promover a adopção, Filipa Namorado quis fugir à fotografia, o conteúdo mais usado pelas associações. “Quando navegamos nessas páginas tudo parece igual e não se chama a atenção para os gatos especificamente”, avaliou. A ilustração como arma de combate pareceu-lhe, por isso, “mais eficaz”: “Posso incitar a atenção e a curiosidade, exagerar, focar determinados aspectos.”

Promotional Video for ‘Bichanos do Porto’ from Filipa Namorado on Vimeo.

Os gatos e a internet

Era também a estratégia mais adequada à mensagem subliminar anti-preconceito: o aspecto físico, a fotografia do gato tal e qual ele é, tem menos importância do que a “identidade” do bichano. A esse plano, Filipa juntou ainda o humor em vez das habituais comunicações de choque: “Quando essa forma de passar a mensagem se tornou regra, banalizou-se. As pessoas já não são tocadas da mesma forma.” Além disso, graceja, os gatos são criaturas que “têm tanto de gracioso e digno como de cómico” — e, ponto importante, “a internet sabe muito bem disso”.

A opção por uma comunicação digital teve também esse aspecto em conta: para além de ser um meio mais económico para o Bichanos do Porto utilizar o material, pareceu a Filipa ser o caminho mais eficaz. E da ideia da ilustração, rapidamente evoluiu para os gifs animados e vídeos.

Filipa Namorado teria uns seis anos quando, “maravilhada”, começou a copiar os esboços da irmã mais velha, entretida a fazer reproduções dos desenhos animados e a desenhar bonecos em papel que, depois de recortados, eram a brincadeira preferida das duas. Já mais tarde — enquanto a irmã mudava agulhas para o curso de Bioquímica — tornou-se “bastante evidente” que o caminho dela havia de ser o das artes. Depois da licenciatura completa, vai tirar um “ano sabático” para, sozinha, dedicar-se a desenvolver conhecimentos de ilustração e animação: “Vou investigar por mim, ensinar a mim mesma”, contou. Depois, talvez um mestrado nessa mesma área.

Para já, a conimbricense está ainda a digerir o trabalho feito para a associação. Nos dois vídeos (espreita aqui e aqui), a mensagem — com desenhos e humor à mistura — tentou ser mais geral: um apelo à adopção e ao cuidado com os bichanos, uma mensagem anti-abandono e anti-maus tratos. Por outro lado, em cada um dos cinco gifs criados, apresentou um dos gatos “menos adoptáveis” do projecto.

A Pakika, que "pode ser tímida mas gosta de miminhos", foi para casa de uma FAT depois de ser recolhida num bairro do Porto: tinha sido atacada por um cão. Receosa de presenças novas, não aceita os mimos de qualquer humano à primeira. Quando Filipa a foi conhecer e se aproximou para lhe tirar uma fotografia, a gata adulta encolheu-se muito. Teve medo. Mas com a dona temporária era já super afável, percebeu a estudante de Belas Artes: “Daí veio a frase do gif dela: é uma gata que precisa de tempo, mas gosta de afecto.” E ainda continua à espera do dono perfeito.

Para criar os desenhos e as descrições, Filipa ouviu as histórias de cada animal, fotografou-os, conviveu com eles. O Zygano derreteu-lhe o coração, ao dar turrinhas nas pernas dela a retribuir os mimos. “Tenho a certeza que qualquer pessoa ficaria feliz de o ter”, enternece-se. Foi Ana Mafalda Azevedo quem o recolheu da rua um dia e se fez FAT dele. Quando numa mercearia ouviu falar de um gato doente abandonado quis logo saber onde estava o bichano. E ao chegar ao pé de Zygano, ele saltou-lhe imediatamente para o colo. Tinha sido recolhido por uma pessoa que, ao percebê-lo doente, o devolveu à rua: “É um gato que nunca vai ser bonito”, admite Mafalda. Mas isso importa? “É tão amoroso que não precisa de ser glamoroso”, escreveu Filipa Namorado.

Por detrás de cada focinho, uma nova história. O Sip Tree, que “é diferente mas adora brincar”, foi encontrado desorientado numa praia em Vila do Conde. O gatinho preto e jovem estava já desidratado e magro do abandono e apresentava problemas neurológicos visíveis. “Treme muito e isso impressiona num primeiro momento. Mas faz tudo. Brinca, come, gosta de colo. É um gatinho espectacular”, diz Mafalda. Assim é também Moinho, um gato bebé que a voluntária acredita ter sido propositadamente atropelado. Ainda move as patas de trás com alguma dificuldade, mas está em recuperação, “só precisa de quem o ajude”, como escreveu Filipa. Para o Riscado, gato a viver também em casa de Ana Mafalda Azevedo há mais de um ano, sonha-se com uma família com um jardim grande ou uma quinta. É que o bichano “não é arisco mas prefere a companhia felina” à humana. “Estes casos são muito difíceis”, admite a psicóloga.

Nos mais de dez anos de trabalho do Bichanos do Porto — iniciado espontaneamente em 2004 por três amigas para salvar a vida de 52 gatos despejados de uma casa na Rua do Bom Sucesso e enviados para o Canil Municipal do Porto — os dias difíceis são muitos. Para cuidar dos gatos, as oito voluntárias são famílias de acolhimento temporário, cuidam com ajuda externa, desdobram-se em cuidados — e, mesmo assim, nem sempre é o suficiente. Se um gato recolhido da rua vem, por exemplo, com uma doença relativamente comum entre animais de rua, a panleucopenia felina, não só pode contaminar todos os outros como obriga a que nesse espaço seja feita uma quarentena prolongada. “Muitas vezes as pessoas pedem-nos ajuda e acham que não acolhemos por má vontade. Não imaginam as dificuldades existentes”, explica Mafalda. Para sobreviver, o grupo junta aos donativos, as feirinhas, a venda de artesanato e outros produtos e os leilões. Depois, é só gostar dos felinos de forma inexplicável. E continuar todos os dias.

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